Boat People (Tóubēn Nù Hǎi) é um filme dirigido pela cineasta honconguesa Ann Hui, lançado em 1982.

Dentre os filmes que vi até agora, este é, sem dúvida, o melhor e também o mais controverso.

Trata-se do último filme da “trilogia do Vietnã” de Hui, e, após assisti-lo, fiquei motivado a explorar os dois anteriores.

A narrativa se passa no Vietnã pós-guerra, sob o olhar de um fotojornalista japonês chamado Akutagawa, convidado pelo regime comunista para documentar a vida no país após o conflito.

Por estar alinhado politicamente com o governo, ele recebe liberdade para circular pelo território.

Inicialmente, há um clima de otimismo triunfalista e um patriotismo crescente, mas esse sentimento logo se desfaz diante das feridas profundas deixadas pela guerra e intensificada pela ditadura. O país mergulha na pobreza, na repressão política e na violência generalizada.

Enquanto explora as ruas de Danang, Akutagawa testemunha a brutalidade do regime que, no início, ele defendia.

Ele conhece Cam Nuong, uma jovem com uma história marcante. Sua mãe trabalha secretamente como prostituta (uma atividade proibida pelo regime) para sustentar os filhos. Cam tem dois irmãos: Nhac, o mais velho, um garoto esperto que fala gírias americanas, e Lang, o mais novo, filho de um cliente coreano de sua mãe.

Através de Cam Nuong, Akutagawa descobre os horrores da vida em Danang, incluindo crianças que vasculham cadáveres em busca de objetos de valor. A violência do regime e os resquícios da guerra contra os Estados Unidos são evidentes, com granadas, armadilhas e minas terrestres espalhadas por áreas civis. Em um momento trágico, Nhac encontra uma munição não detonada enquanto revira o lixo e morre, deixando Cam profundamente traumatizada.

O otimismo inicial de Akutagawa se desfaz à medida que ele se aproxima de Cam Nuong e assume um papel protetor em sua vida. Em uma cena chocante, a mãe de Cam é presa por prostituição e forçada a confessar publicamente. Ela comete suicídio de forma brutal, deixando Cam e Lang sob a ameaça de serem enviados a um orfanato governamental.

Desiludido com o regime, Akutagawa decide ajudar as crianças secretamente. Ele vende sua câmera para financiar a fuga de Cam e Lang em um barco precário, rumo a uma zona mais segura.

O termo “boat people”, que dá título ao filme, refere-se aos refugiados que fugiam de seus países em embarcações precárias, muitas vezes enfrentando condições extremamente perigosas em busca de asilo e melhores condições de vida. Esse fenômeno ganhou destaque global após a Guerra do Vietnã, quando milhões de vietnamitas, cambojanos e laosianos fugiram de perseguições políticas, conflitos armados e pobreza.

Após a queda de Saigon em 30 de abril de 1975, que marcou o fim da Guerra do Vietnã e a reunificação do país sob o regime comunista, muitos vietnamitas que temiam represálias começaram a fugir. Os principais destinos eram países do sudeste asiático, como Tailândia, Malásia, Indonésia, Filipinas e, principalmente, Hong Kong, então um protetorado britânico.

O contexto político do filme é complexo, assim como sua repercussão e produção.

Curiosamente, trata-se de um filme com nuances anticomunistas, protagonizado por um japonês e produzido com a cooperação do governo da República Popular da China.

Para entender essa aparente contradição, é necessário desvencilhar-se de noções simplistas sobre política.

As relações entre os países comunistas da região eram marcadas por tensões e rivalidades, muitas vezes mais intensas do que as que existiam com os países capitalistas. Por exemplo, o Vietnã estreitou laços com a União Soviética e o Japão, dois grandes rivais da China, recebendo ajuda em infraestrutura, alimentos, assistência médica e apoio aos refugiados.

Enquanto isso, a China travou uma guerra com o Vietnã em 1979, após este apoiar a queda do regime do Khmer Vermelho, aliado dos chineses.

No Festival de Cinema de Cannes, o filme gerou controvérsia.

Simpatizantes da esquerda pró-Vietnã protestaram contra sua inclusão na competição principal, e o governo francês, buscando fortalecer relações com o Vietnã, pressionou para que fosse retirado.

Ann Hui, como boa honconguesa, ficou no meio desse fogo cruzado entre comunistas, dentro de um protetorado que assistia de camarote uma competição pra ver quem é o pior.

No meio disso tudo, ela enfatizou, diplomaticamente, que sua intenção não era fazer um filme anti-vietnamita, mas sim retratar o sofrimento de pessoas reais. Aquelas que esquecemos que existem no meio de todas essas fantasias ideológicas que não servem pra absolutamente nada a não ser criar uma massa de manobra que jura, de pé junto, que não é alienada.

Em suma, maravilhoso.

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