A Saga do Judô (ou Sugata Sanshiro no original) é o filme de estréia de Akira Kurosawa.

Shiro Saigo
Shiro Saigo

Ele foi inicialmente lançado no Japão em 25 de março de 1943 pelo estúdio Tōhō e é baseado no romance homônimo de Tsuneo Tomita, cujo protagonista (chamado Sugata Sanshiro) foi inspirado num lutador real chamado Shiro Saigo, que é um dos primeiros e mais famosos praticantes de judô da história.

Considerando o ano em que foi lançado, podemos ver que o filme foi gestado dentro de um caótico um contexto de guerra.

O Japão em 1943 estava mergulhado na Segunda Guerra Mundial ao lado dos fascistas, buscava na cultura o mesmo que os seus irmãos e inimigos de guerra: a valorização de heróis nacionais com fins propagandísticos do próprio regime.

Nada mais conveniente do que usar a autoridade de uma respeitada figura do passado para ventilar os ideais que supostamente o governo japonês estava guarnecendo e é por este motivo que este filme, depois da derrota do Japão, entrou na lista de filmes censurados pelas forças de guerra ocupantes (no caso, os Estados Unidos da América).

Devido a censura que os Estados Unidos impôs ao Japão depois de sua rendição (contra qualquer conteúdo que sinalizasse um espírito nacionalista) sabemos que o filme que conhecemos é apenas um retalho do que originalmente foi concebido.

Mesmo vendo os retalhos de um filme, conseguimos notar que Akira Kurosawa não fez uma mera propaganda insólita de um regime político do qual ele nem se alinhava ideológicamente.

Akira Kurosawa aproveitou a chance e trabalhou questões que lhe são próprias e que vão muito além das demandas imediatistas do Estado japonês.

A história do filme se passa no ano de 1882, décimo quinto ano da Era Meiji, uma época de fortes transformações econômicas e culturais no Japão.

Foi na Era Meiji, por exemplo, que se criou a primeira ferrovia, o serviço militar, o banco, a moeda oficial do país (o iene, até hoje usado), as universidades, os hospitais (por influência portuguesa e católica dos jesuitas) e até mesmo a primeira constituição.

O Imperador Meiji, de quinze anos de idade, mudou-se de Kyoto para Tóquio no final de 1868, após a queda de Edo.
O Imperador Meiji, de quinze anos de idade, mudou-se de Kyoto para Tóquio no final de 1868, após a queda de Edo.

Essas transformações, que derivaram de uma somatória de fatores que incluem uma abertura econômica forçada do país (feita pelos Estados Unidos), golpes políticos e guerra civil interna, foram responsáveis tanto por uma modernização quanto por uma ocidentalização de costumes; isso criou no Japão uma relação ambígua de admiração e ressentimento com o ocidente e com o conceito de “novo”.

A sociedade japonesa viveu numa espécie de encruzilhada temporal, onde o velho e o novo, o tradicional e o moderno, o oriente e o ocidente, conivivam ao mesmo tempo e no mesmo espaço e, como era de se esperar, criavam tensões entre si.

Essa tensão entre coisas conflitantes convivendo no mesmo espaço será um dos temas que Akira Kurosawa irá trabalhar neste filme e em muitos outros.

No filme, acompanhamos a história Sugata Sanshiro, um jovem que chega à cidade em busca de um mestre de ju-jutsu chamado Monma Saburo, da Escola de Shinmei, para orientar-lhe em seus treinamentos.

Ao chegar na cidade descobre que o mestre estava ausente, mas mesmo assim é aceito na Escola Shimmei durante uma confraternização entre seus discipulos.

Entre as conversas, ele toma conhecimento dos desafetos destes com um mestre chamado Yano Shogoro, especialista em uma nova arte marcial chamada “judô”.

Aqui já vemos delineado o conflito entre o velho e o novo.

O judô era visto com desprezo por eles por ser uma “arte moderna” ao mesmo tempo que era notado por todos como uma evolução do ju-jutsu.

Os membros da escola de ju-jutsu, com receio da estagnação de sua arte, elaboram um plano para matar ou desmascarar o mestre Yano em uma emboscada.

O carro de Yano é abordado numa ponte pelo grupo de lutadores, acompanhados de Sanshiro.

Sanshiro assiste à derrota de todos seus colegas e, fascinado, tenta tornar-se discipúlo de Yano.

Veja que o protagonista, ao tomar contato com a essa nova arte marcial, que se provava diante dos seus olhos como mais eficiente, se desnuda do orgulho (algo muito valorizado na cultura japonesa, especialmente no contexto de Segunda Guerra Mundial) e se torna seguidor do seu novo mestre.

Após tornar-se discípulo de Yano, Sanshiro demonstra ser um jovem bastante teimoso e indisciplinado. Ele se envolve numa briga de rua e é desaprovado pelo seu mestre, que censura o jovem declarando que ele “desconhece o caminho do homem.

Arrependido e desesperado para provar a seu mestre que está capacitado a ser seu discípulo, Sanshiro mergulha nas águas geladas do poço perto do templo onde Yano costuma rezar.

Sua intenção é mostrar ao mestre que ele está disposto a morrer naquelas águas para conseguir seu perdão.

Sanshiro agarra-se a um arbusto e permanece lá durante toda a noite, mesmo diante das tentativas do sacerdote local de tirá-lo de lá.

O entendimento e percepção do “caminho do homem” mencionado pelo mestre Yano acontece quando Sanshiro, no meio da noite, observa uma flor de lótus iluminada pela luz da lua.

Momento em que Sugata Sanshiro observa a flor de lótus iluminada pela luz da lua
Momento em que Sugata Sanshiro observa a flor de lótus iluminada pela luz da lua

Este momento de beleza singular, visto apenas por Sanshiro, proporciona ao jovem guerreiro sua necessária epifania e o ponto de virada da história.

Não há como decodificar essa mudança sem apelar para uma explicação puramente espiritual.

A partir deste momento, o filme se torna assumidamente budista.

As mudanças que ocorrem a partir desta contemplação podem soar inverossimilhantes se estivermos presos a ideia de que há necessariamente uma explicação lógica, racional e material para tudo.

Vivemos em um mundo despiritualizado e costumamos relegar a ideia de uma iluminação ou revelação num plano de ilusão ou desconfiança. Ou seja, somos automáticamente refratários a ideia de um conhecimento que não está relacionado a uma cadeia de memórias e experiências adquiridas ao longo de uma vida, mas que veem de alguma fonte superior e transcendental.

No zen budismo, a flor de lótus está associada a ideia de pureza e renascimento, enquanto a luz da lua está associada ao conhecimento.

Esta síntese visual (que também é simbólica e espiritual) vai operar uma transformação fulminante (como é próprio das epifanias) no protagonista e ele renascerá mais puro e sábio.

A flor de lótus que Sanshiro contempla no lago, o palco da expiação dos seus pecados, pode ser interpretada como um símbolo do florescimento do seu caráter.

Naquele lago, Sanshiro estava renunciando o conforto e dissipando seu “eu” e sua impulsividade num gesto de sacrifício.

As sinalizações místicas da flor e esse ato simbólico de sacrifício fazem com que Sanshiro seja readmitido como discípulo de Yano e seja autorizado a continuar seus treinamentos.

Perceba como Akira Kurosawa desloca a figura de Yano no filme. No começo, ele, como mestre de uma arte nova, era a representação do moderno. Agora, ele é a representação de uma sabedoria antiga e tradicional.

O que Akira Kurosawa sinaliza aqui é que existe um modo de projetar a sua tradição, a sua religiosidade e sua sabedoria ancestral sem abrir mão do que é novo, moderno e eficiente. Akira Kurosawa, de forma sutil, arroga o próprio espírito da Era Meiji na figura de Yano e Sanshiro.

A terceira parte do filme é pontuada novamente pela ideia de rivalidade, especialmente pela chegada de Higaki Gennosuke, um exímio praticante do ju-jutsu que desafia tanto Yano quanto Sanshiro para um combate de vida ou morte.

O que é interessante na figura de Higaki é que ele se apresenta como guardião de uma arte tradicional, o ju-jutsu; no entanto, vemos que trata com desprezo aquilo que é realmente tradicional no espírito japonês. Isso fica explícito em diversas cenas, como quando o mesmo utiliza uma flor de lótus como cinzeiro, desprezando o conteúdo simbólico que lhe é inerente.

Essa é uma das diversas maneiras que Akira Kurosawa nos apresenta de forma exclusivamente visual aquilo que ele quer dizer, o que demonstra, já no primeiro filme, que ele tem um domínio narrativo da linguagem cinematográfica como poucos.

A luta entre Sanshiro e Higaki, numa planice e sob a ótica de testemunhas, é o ápice do filme.

Sugata Sanshiro e Gennosuke Higaki
Sugata Sanshiro e Gennosuke Higaki

A vitória de Sanshiro estará relacionada com as reminicências da flor de lótus, que retorna em sua memória durante o combate em um monte crucial.

Sanshiro, ao lembrar da flor, renasce no meio do combate assim como renasceu como discípulo de Yano naquele lago frio ao lado do templo.

Em suma, A Saga do Judô está muito além de ser um filme sobre uma arte marcial específica e está muito além de ser uma propaganda política de um herói nacional. Trata-se de um filme sobre o moderno e o tradicional e também sobre disciplina, sacrifício e iluminação.

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