Kagemusha, a Sombra do Samurai é um drama de guerra dirigido por Akira Kurosawa em 1980.
Apesar de não ser tão lembrado quanto outros filmes do mesmo estilo, como “Sete Samurais” e “Yojimbo“, “Kagemusha” recebeu um reconhecimento imediato e quase unânime da crítica mundial quando foi lançado, e até hoje é considerado um dos épicos de samurai mais majestosos, pictóricos e ambiciosos da história do cinema.
O filme recebeu duas indicações ao Oscar, nas categorias de Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Direção de Arte. Também foi indicado ao Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro. No BAFTA (British Academy of Film and Television Arts), ganhou dois prêmios nas categorias de Melhor Direção e Melhor Figurino, além de ter sido indicado nas categorias de Melhor Filme e Melhor Fotografia. Recebeu o Prêmio César (o mais importante prêmio do cinema francês) de Melhor Filme Estrangeiro e também a Palma de Ouro no Festival de Cannes (empatado com “All That Jazz“, de Bob Fosse).
Em 2009, o filme foi votado em 59º lugar na lista dos Maiores Filmes Japoneses de Todos os Tempos pela revista de cinema japonesa Kinema Junpo.
Este filme dificilmente poderia dar errado, pois além de ser uma superprodução de um diretor renomado, contou com o envolvimento de uma incrível combinação de talentos artísticos e comerciais. George Lucas e Francis Ford Coppola são creditados como produtores executivos na versão internacional do filme, pois convenceram a 20th Century Fox a compensar um déficit no orçamento quando os produtores originais da Toho Studios não tinham condições de completar a produção. Em troca, a 20th Century Fox recebeu os direitos de distribuição do filme.
A História
A história do filme se passa durante o Período Sengoku, um período de intensas guerras civis no Japão.
Os líderes, conhecidos como daimyōs, estão ansiosos para conquistar Quioto. Entre eles estão Shingen Takeda, Nobunaga Oda e Ieyasu Tokugawa.
Shingen parte em direção a Quioto, enquanto Nobunaga e Ieyasu se unem para impedi-lo. Shingen se aproxima muito do campo inimigo e é atingido por um franco-atirador. Gravemente ferido, ele ordena a seus conselheiros que, caso ele morra, sua morte seja ocultada por três anos.
Começam a surgir rumores sobre sua morte, mas um sósia assume seu lugar e se passa por ele, sem que ninguém perceba. Assim, ele conquista o respeito do clã Takeda e mantém os inimigos afastados, pois acreditam que o líder está miraculosamente vivo.
Esse sósia é um criminoso de classe baixa que foi preparado para esse momento. Apesar de ter uma semelhança física com Takeda, ele é um marginal ignorante e assustado, o oposto completo do grande daimyō.
Para evitar suspeitas, esse sósia teve que ser treinado para aparentar nobreza e disfarçar sua verdadeira natureza.
A Sombra
“Kagemusha” é um termo japonês que significa literalmente “guerreiro das sombras” e isso possui uma conexão muito interessante com o grande tema do filme: a identidade.
Primeiramente, temos no filme uma discussão sobre identidade política. Aqui é apresentado que, para a maioria das pessoas na elite, o poder não reside na própria pessoa, mas sim no cargo que ela ocupa (o indivíduo seria apenas a “sombra” desse cargo). Portanto, a substituição de um nobre por um simples marginal não afetaria a estrutura política nem os desdobramentos da história, desde que a troca não fosse descoberta.
O período “transcendentalista” no Japão teve seu declínio durante o fial período Heian, no qual o poder político era justificado pela autoridade religiosa.
Em todos os períodos posteriores ao período Heian, observamos um aumento gradual da decadência nesse aspecto. Em todas as épocas e lugares, esses momentos de decadência sempre coincidem quando a autoridade religiosa é substituída pela autoridade militar – ou seja, o poder passa a ser exercido por um grupo de pessoas com uma mentalidade bruta, anti-intelectual e orientada por uma ética utilitarista de “estratégia”.
A partir dai, a aparência e a essência se equivalem no jogo de poder. Para um marginal se tornar “rei”, não é mais necessário que os deuses concordem – basta ele vestir uma túnica a aprender a simular um rei.
No período Tokugawa, a política tornou-se um palco tão maquiavélico de conspirações que os valores supostamente transcendentais, que poderiam justificar o poder, se tornaram meras retóricas populistas instrumentalizadas como uma lembrança nostálgica de sacralidade.
Filme de Samurai e Filme de Ronin
Além do drama da identidade política, é interessante notar a diferença na identidade estética que Kurosawa adota no filme, em comparação com seus dramas samurais anteriores, como Sete Samurais, Yojimbo e Sanjuro.
Nos seus primeiros filmes, Kurosawa estava mais interessado nos ronins (samurais sem mestres) do que nos samurais em si, pois neles havia um drama existencial de desenraizamento, crise de valores e falta de direção. É interessante como essa confusão existencial do ronin era representada nos filmes, até mesmo por elementos atmosféricos sutis. Os filmes sobre ronins eram repletos de chuvas, trapos e lama.
Kagemusha, por outro lado, é um filme sobre samurais propriamente ditos, e sua estética parece estar em conformidade com esse aspecto heróico e épico da visão de mundo de um samurai.
Tudo é belo nesse filme, desde os palácios (onde as filmagens são matematicamente simétricas e impecavelmente polidas), aos lagos, pores do sol e até mesmo o caos do campo de batalha parecem ser cuidadosamente compostos como uma obra de arte.
A Redenção
Apesar de ser o oposto de filmes anteriores, ainda podemos perceber que há o Kurosawa de sempre – trabalhando em um tema que é recorrente em seus filmes: o da redenção.
O ladrão-sósia passa de mera imitação a uma assimilação heróica do que significa ser um guerreiro de verdade no último momento do filme.
Ele morre de forma épica em um campo de batalha, lavando sua honra com seu próprio sangue – assim como um samurai.
A grande ironia kurosawiana está em notar que sua morte é mais heróica do que a do daimyō que ele imitava, provando que ele não é a “sombra do samurai”, mas o próprio samurai.
Um Épico da Derrota
Além dessa questão da identidade e do heroísmo, uma das coisas mais interessantes do filme é que ele é um épico sobre a derrota.
Estamos testemunhando o doloroso declínio do clã Takeda, que foi dizimado em 1575 na sangrenta Batalha de Nagashino.
A cavalaria Takeda, antes invencível, é exterminada pelo poder dos rifles dos clãs aliados Tokugawa e Oda, que utilizaram armas e táticas recentemente adquiridas por meio de acordos comerciais com os portugueses.
Esse massacre histórico é retratado no filme em uma sequência climática, com uma abordagem ousadamente impressionista, de forma shakesperiana.
Enfim, Kagemusha consegue mostrar a flexibilidade e maestria de Kurosawa.