Dodes’ka-den é um drama de 1970 dirigido por Akira Kurosawa e baseado no romance “Uma Cidade sem Estações” do escritor japonês Shugoro Yamamoto.
Foi o primeiro filme colorido de Akira Kurosawa e também o primeiro filme sem o ator Toshiro Mifune, que encerrou a parceira com o diretor cinco anos antes, depois do lançamento do filme O Barba-Ruiva, no qual ambos tiveram sérios desentendimentos.
O filme também foi o primeiro grande fracasso do diretor. Ele teve um orçamento de ¥ 100 milhões, que é considerado baixo. Mesmo assim, o filme não foi nem suficiente para se pagar. O próprio Kurosawa teve que financiar o filme e, para isso, teve que hipotecar sua casa.
A baixa bilheteria e os gastos pessoais deixou o diretor, que já estava com 61 anos, com grandes dívidas e sem perspectivas.
A decepção de Kurosawa foi tão grande que culminou, um ano depois, em 22 de dezembro de 1971, em uma tentativa de suicídio – onde o mesmo tentou cortar seus pulsos e pescoço com uma navalha.
É interessante notar como essas histórias de pré e pós-produção do filme se comunicam diretamente com a obra em si – onde o sonho e a imaginação tentavam se sobrepor ao fato evidente da falência econômica.
O filme é uma antologia de vinhetas sobrepostas que exploram a vida de um grupo de moradores que vivem numa favela nos arredores de Tóquio, no meio de um depósito de lixo e entulho.
O primeiro personagem a ser apresentado é Roku-chan, um menino com problemas mentais que vive em um mundo de fantasia no qual é um motorista de bonde.
Em seu mundo de fantasia, ele dirige seu bonde por uma rota definida e agendada, ao longo da favela na qual ele vive junto com a mãe. Enquanto ele vai se deslocando por entre os barracos, ele vai recitando o refrão honomatopéico “dodes’ka-den, dodes’ka-den, dodes’ka-den”, imitando o som de seu veículo.
Além dele temos Ryotaro, um homem bom, inocente e trabalhador que está encarregado de sustentar os muitos filhos que sua esposa infiel Misao concebeu em diferentes casos de adultério.
Masuda e Kawaguchi, dois amigos bêbados que se envolvem em troca de esposas, apenas para retornar para suas próprias no dia seguinte como se nada tivesse acontecido.
Hei, um homem sombrio e melancólico que é visitado por Ochō, que parece ser sua ex-esposa.
Shima, um homem com um tique nervoso, que está sempre defendendo sua esposa aparentemente desagradável e intimidadora.
Katsuko, uma garota que é estuprada por seu tio alcoólatra e fica grávida.
Temos também um mendigo e seu filho que moram em um carro abandonado. Enquanto o pai está preocupado com devaneios de possuir uma casa magnífica, o menino vai buscar comida para ambos.
Este são alguns dos personagens principais em que o filme se dedica a explorar os contratempos e angústias.
A ação de todos os personagens são comentadas pelas mulheres na torneira, que se comportam como o coro dos teatros gregos.
Temáticamente esse filme se comunica um pouco com Um Domingo Maravilhoso ao utilizar o recurso dos sonhos e da imaginação como uma fuga temporária de uma realidade degradante. A diferença é que o sonho em Um Domingo Maravilhoso é uma indução consciente de auto-preservação emocional enquanto aqui é uma fantasia escapista decorrente uma doença mental ou de delírios de uma realidade insuportável, o que deixa tudo significativamente mais triste
Dodes’ka-den pode ser descrito como o filme mais italiano de Akira Kurosawa. A representação exuberante, embora suja, da vida da classe baixa às vezes lembra Pier Paolo Pasolini, enquanto a estrutura episódica, o humor e o sentimentalismo evocam os filmes de Federico Fellini.
Para algumas das tomadas externas, Kurosawa e os membros da equipe pintaram os cenários para que parecessem especialmente coloridos, uma técnica que Michelangelo Antonioni havia experimentado no filme O Deserto Vermelho (1964), deixando toda decadência presente no filme com ares paradoxalmente suntosos.
Existe nesse filme alguns exageros que incomodam um pouco – alguns dos episódios parecem simplistas ou excessivamente sentimentais. Até mesmo os maneirismos estilísticos do filme, apesar de únicos, depois de um certo ponto começam a parecer kitsch – no entanto, o filme contém momentos esplendorosos suficientes que fazem valer a pena a experiência de assisti-lo.
Esse filme, assim como Um Domingo Maravilhoso, colocam o sonho e a imaginação como uma ferramenta possível mas limitada de se enfrentar a realidade.