“As Memórias de Marnie” é uma adaptação do livro When Marnie Was There de 1967, escrito pela britânica Joan G. Robsion, um dos livros infantis preferidos de Hayao Miyazaki.
O filme, dirigido por Hiromasa Yonebayashi, é sobre a amizade de Anna com uma misteriosa garota chamada Marnie.
Anna é uma órfã áspera, triste, com problemas de saúde e que passa a maior parte do tempo sozinha, desenhando.
Marnie, sua amiga, ora soa como fruto materializado da sua mente, ora soa como uma figura fantasmagórica, que vaga nos arredores de uma misteriosa casa do lago e nos sonhos de Anna.
Sua presença na trama sugere um matiz sobrenatural, até mesmo pela sua aparência, que é completamente destoante de todos os outros personagens.
Marnie é mostrada como uma garota loira, de olhos azuis, com trajes vitorianos e feições finas e angelicais. Suas origens sugerem de uma altiva linhagem aristocrática europeia, não pertencente a esse tempo ou espaço.
Podemos identificar vários temas da Inglaterra pós-guerra como orfandade, abandono, ódio de classe e retratos espectrais de uma aristocracia extinta – no entanto, o que é importante aqui é a influência de Marnie no mundo interior de Anna, pois ela é quem conduz Anna em suas próprias memórias.
Ao investigar o mundo de Marnie (que em boa do filme não sabemos se existe ou não), Anna acaba descobrindo o próprio mundo, suas próprias origens, a fonte de seus traumas (ligadas as circunstâncias de sua orfandade) e suas próprias memórias (que também são as memórias de Marnie).
O interessante é notar as sutilezas simbólicas que o filme apresenta.
São tão sutis quanto sofisticadas.
A misteriosa casa onde Anna fixa sua atenção (e onde vaga Marnie), que lhe é estranhamente familiar desde o início, é simbolicamente colocada num lugar de difícil acesso, onde se deve atravessar um lago com um barco a remo (e ela deve aprender a remar para chegar lá).
Há outro lugar interessante, um silo com fama de mal-assombrado.
O tenebroso silo, lugar onde Anna evita pela fama e fonte de traumas horríveis de Marnie (as criadas maltratavam-na prendendo-a lá só de maldade) – se torna paradoxalmente o lugar de refúgio de ambas numa tempestade.
Mais do que simples estruturas arquitetônicas, tanto a acolhedora casa do lago quanto o inóspito silo abandonado cumprem um papel na transformação de Anne – como se ela precisasse necessariamente entrar em ambos os lugares para se descobrir por completo.
Um lugar representando memórias boas e o outro, memórias ruins. Ambos necessários.
A transformação de Anne se torna visível ao longo do filme.
De uma figura sem expressão e arredia a toques, ela se torna uma acolhedora, protetora, expressiva, dada ao abraço e ao perdão.
Ao ver pela primeira vez, fiquei extasiado tanto com a carga simbólica refinada quanto com o maravilhoso desenvolvimento dos personagens. Na segunda vez que assisti, fui menos analítico e mais humano, permitindo-me emocionar. Sim, o filme conseguiu me deixar emotivo com o tema do perdão e da reconciliação do passado.