O Gato Preto é o segundo filme de terror de Kaneto Shindo.
Não é tão icônico ou repleto de alegorias quanto Onibaba, outro filme de terror do diretor – trata-se de um filme de terror folclórico mais linear, onde o tom sobrenatural é mais realçado, sem margens para interpretações ambíguas.
Se pudéssemos resumir “O Gato Preto”, poderíamos dizer que é um atmosférico conto de fadas sombrio historicamente ambientado.
Assim como Onibaba, a história se passa em algum lugar do Japão do século XIV – onde fervilhava uma violenta guerra civil, que bestializava toda sociedade.
Nos primeiros momentos do filme, vemos samurais saqueando, estuprando e matando duas indefesas mulheres camponesas, uma mulher mais velha e sua nora (outro ponto de semelhança com Onibaba).
Essas duas mulheres retornam como fantasmas e fazem um pacto com Deuses Malignos para atrair, matar e beber o “odioso sangue” de todos os samurais.
Nas entranhas do bosque, elas promovem sua vingança.
Os samurais eram atraídos para uma aconchegante cabana, embriagados com saquê, tinham uma relação sexual com a moça mais jovem e acabavam tendo seu pescoço dilacerado, enquanto a mulher mais velha fazia um estranho rito ao fundo – uma espécie de dança macabra.
No entanto, um desses samurais seria o próprio filho e esposo dessas mulheres – que havia sumido na guerra e voltado com honras e glórias, depois de ter derrotado um valoroso oponente. Ele estava totalmente alheio aos crimes que outros samurais haviam cometido contra sua família.
Este samurai inocente é enviado em missão para ir atrás desses misteriosos fantasmas e mata-los (fantasmas podem ser mortos no Japão – esqueça aquela noção de “ectoplasma”).
A partir daqui a história ganha contornos shakespearianos, nivelando amor e pacto.
A mulher fantasma não queria matá-lo, pois era seu marido e o amava – embora ela estivesse obrigada pelo seu contrato maligno. Ele, por sua vez, não queria matá-la, pois era sua amada esposa – apesar de ter se comprometido com seu general.
Kaneto Shindo utiliza das mesmas técnicas cinematográficas que usou em Onibaba. Cenários claustrofóbicos, jogo de luzes e sombras, interpretações que simulam peças de teatro Noh, trilha sonora baseada em percussões tradicionais.
Enfim, o cinema de terror de Shindo tem sua assinatura, isso ficou mais que evidente.
Ryūnosuke Akutagawa
As influências para o filme de Kaneto Shindo partem mais do conto “Dentro de um Bosque” do escritor Ryūnosuke Akutagawa, considerado uma espécie de “Edgar Allan Poe” do Japão (pode não ser coincidência que “Gato Preto” – um conto de Edgar – tenha inspirado essa história).
Este conto é constituído de sete diferentes versões do assassinato de um samurai, “Kanazawa no Takehiro”, cujo cadáver foi encontrado em um bosque perto de Quioto.
Akutagawa carrega um estilo que mistura literatura oriental e literatura inglesa.
Assim como Edgar Allan Poe, suas histórias exploram o lado negro da natureza humana e, assim como o problemático escritor americano, era viciado em entorpecentes – chegando a se suicidar aos 35 anos de overdose de veronal (uma espécie de sedativo).
Se você está se perguntando, o que “Gato Preto” tem a ver com toda essa história, não se espante, ficou nebuloso para mim também.
No filme, as duas mulheres assassinadas cuidavam de um gato preto.
Este gato acabou testemunhando todo o massacre das donas e, depois, aparecia lambendo as feridas delas.
Isso promoveu uma espécie de pacto acidental com entidades malignas.
As mulheres, quando fantasma, se transformavam, em rápidos relances, em figuras animalescas que se assemelhavam a um gato.
Japão e os gatos
Estudar folclore é seguir trilhas até onde você pode ir, sabendo que nunca chegará ao seu destino. Quanto mais para trás você descasca as camadas do tempo, mais enevoadas as coisas se tornam. Você deixa o que pode provar e entra naquele reino nebuloso do “melhor palpite”.
Considere o fato de que gatos existem no Japão. Ninguém sabe exatamente quando e como eles chegaram lá. O “melhor palpite” é que eles viajaram pela rota da seda do Egito à China e à Coréia, e depois atravessaram os mares.
Eles vieram como caçadores de ratos guardando preciosos sutras budistas escritos em pergaminho ou como presentes caros negociados entre imperadores para obter favores. Muito provavelmente essas duas coisas aconteceram em momentos diferentes.
Uma das principais atividades econômicas do Japão é a pesca. Os gatos, ao chegarem no páis, simplesmente encontram um lar perfeito – e se multiplicaram.
Em algumas ilhas, como Aoshima (na provincia de Ehime), há seis vezes mais gatos que humanos.
Embora seja fácil ver que eles são amados, o Japão também teme os gatos.
Isso se deve ao fato deles não serem nativos do país.
Enquanto a sociedade japonesa evoluiu ao lado de raposas (kitsunes) e guaxinis (tanukis), os gatos possuem aquela aura de vir de fora do mundo conhecido. Combine isso com a natureza misteriosa natural dos gatos, sua capacidade de se esticar em proporções aparentemente não naturais, como eles podem andar sem fazer barulho e seus olhos brilhantes que mudam de forma à noite: e é a receita perfeita para uma imaginação temerosa.
As casas japonesas eram iluminadas principalmente por lâmpadas de óleo de peixe. Os gatos adoram lamber o óleo e, à noite, sob a luz brilhante da lâmpada, projetam enormes sombras nas paredes, aparentemente se transformando em enormes criaturas.
Isso cria no imaginário coletivo a noção de que eles são metamorfos.
A primeira aparição conhecida de um gato sobrenatural no Japão ocorreu no século XII. Segundo relatos, um enorme gato de duas caudas, comedor de homens, apelidado de nekomata, viva na floresta de Nara.
O país tem uma longa e muitas vezes assustadora história de folclore envolvendo monstruosos gatos sobrenaturais. A tradição mágica do Japão é ampla e profunda – varia dos metamorfos fantásticos e mágicos (bakeneko) aos horrendos comedores de cadáveres demoníacos (kasha).
Havia tambem uma ideia de que eles tinham uma sociedade própria pois muito, a noite, saiam com outros gatos para lugares misteriosos e apenas voltavam no dia seguinte.
Os gatos se tornam muito parecido com os donos ao longo do tempo, sempre observando com atenção tudo o que eles estão fazendo.
Isso criou uma ideia de que eles, as escondidas, imitam os humanos.
Havia uma crença de que os gatos deixavam suas casas à noite, se vestiam de quimonos, bebiam saquê, fumavam cachimbo, se divertiam com jogos de tabuleiros e tocavam o shamisen (ironicamente, um instrumento feito com tripas de gato) em festas selvagens antes de voltarem para casa ao amanhecer