Trono Manchado de Sangue é um jidaigeki (filme de época) co-escrito, produzido, editado e dirigido por Akira Kurosawa.
O filme transpõe o enredo da peça Macbeth, de William Shakespeare, da Escócia medieval para o Japão feudal, com elementos estilísticos extraídos do teatro Nô.
O filme é estrelado por Toshiro Mifune e Isuzu Yamada nos papéis principais, inspirados nos personagens Macbeth e Lady Macbeth respectivamente.
Assim como na peça, o filme conta a história de um guerreiro que assassina seu soberano por insistência de sua ambiciosa esposa.
As peças de William Shakespeare foram lidas no Japão desde a Restauração Meiji em 1868 e proibidas durante a Segunda Guerra Mundial por não serem japonesas.
Akira Kurosawa afirmou que admirava Macbeth de Shakespeare há muito tempo e que imaginou fazer uma adaptação cinematográfica depois de concluir seu filme Rashomon de 1950.
No entanto, quando soube que Orson Welles havia lançado sua própria versão de Macbeth em 1948, Kurosawa decidiu adiar seu projeto de adaptação por vários anos.
Sem a poesia do diálogo de Shakespeare para recorrer, Kurosawa preenche o vazio com visuais evocativos.
É importante lembrarmos que o título do filme original se difere muito das traduções que percorreram o mundo. O título em japonês do Trono Manchado de Sangue é Kumonosu-jō, que pode ser traduzido como “O Castelo da Teia de Aranha” – sendo que este não é apenas o significado do título do filme como também o nome do feudo onde ele transcorre.
Apesar da mudança de cenário, linguagem entre outras inúmeras liberdades criativas, Trono Manchado de Sangue é frequentemente considerado uma das melhores e mais fiéis adaptações da peça, mesmo que pouco ou nada do texto original da peça esteja presente nas falas dos personagens dentro do filme.
Como bem foi escrito em um artigo acadêmico da Universidade Federal de Minas Gerais de Célia Arns de Miranda e Suzana Tamae Inokuchi (link aqui) entitulado “Um olhar oriental sobre Shakespeare” esse fato enfatiza o aspecto de que uma tradução intersemiótica e cultural pode englobar, muitas vezes, elementos sutis, como intencionalidades e motivações internas contidas no texto original, que são transpostas para o contexto cultural alvo.
Um dos méritos deste filme é ter alcançado êxito ao retrabalhar, de uma maneira radical, uma peça shakespeariana para a grande tela sob o prisma de uma cultura e história não-ocidentais.
Julio Plaza descreve em seu livro “Tradução Intersemiótica” essa prática como críticocriação ou metacriação.
Isso nos ajuda a entender o paradoxo que Trono Manchado de Sangue representa. Esse filme é uma adaptação fiel de Shakespeare ao mesmo tempo um filme muito autoral de Kurosawa.
Esse tipo de obra só é possível por que Kurosawa se determinou a não fazer uma mera tradução literal de Shakespeare para japonês, pois isso seria apenas uma das muitas “inflações babélicas” desconectadas de um sentido real. Pelo contrário, ele retrabalhou toda obra (em textos, imagens e referências) preservando o núcleo imaterial daquilo que faz dela ser uma obra com vocação universal.
É importante tocar no tema do protagonismo da imaterialidade pois, diferente do que os materialistas pensam, a realidade não é determinada pelo meio (influenciada sim, determinada nunca) mas por aquilo que é, a bem da verdade, divino, simbólico ou metafísico.
E o que é imaterial em Macbeth? O tema da ambição, da culpa e o confronto entre destino e livre-arbítrio. Esses temas perseguem a humanidade, independente das condições materiais que lhe são impostas.
Uma adaptação estritamente materialista se preocuparia em trivialidades secundárias como geografia, hábitos, costumes, economia e contexto histórico.
A adaptação de Kurosawa é tão boa e reconhecida pois busca o núcleo imaterial transcendente na sua fonte.
Os temas
Conforme foi dito anteriormente, um dos principais temas da obra é a espinhosa questão da predestinação e do livre arbítrio, temas muito caros e muito discutidos no mundo cristão.
Até que ponto a profecia garante seu sucesso por meio de sua revelação? Se Washizu não soubesse do seu destino, ele teria considerado assassinar o Grande Senhor? Ao informar o guerreiro de seu “futuro”, o espírito não estaria simplemente pavimentando o caminho de conclusão de sua própria profecia?
O segundo tema envolve a falha trágica do personagem principal: a ambição. Alimentado pela sede de status de sua esposa e sua própria insegurança sobre sua posição na hierarquia de liderança, Washizu é transformado de um bom homem e guerreiro respeitado em um ditador louco pelo poder, disposto a fazer qualquer coisa, incluindo matar seu aliado mais próximo, para manter sua posição no trono.
Uma razão pela qual Kurosawa queria fazer uma versão de Macbeth é porque ele percebeu isso como um aspecto recorrente da história humana, repetindo-se interminavelmente ao longo dos anos. Ele suspeitava com razão que, embora o filme tenha sido feito em 1957, nunca perderia relevância.
Atmsofera gótica e expressionista
O filme, rodado em preto e branco, é impecavelmente composto com uma atmosfera gótica e expressionista.
As cenas filmadas por trás dos arbustos em cenários preenchidos por neblinas e ossos atulham o filme de uma claustrofobia fantasmagórica. O sobrenatural aqui não é apenas uma sugestão subjetiva de loucura (apesar dela existir), mas algo real – compartilhado entre pares.
O expressionismo da obra se reflete nas grandes fortalezas de tamanhos retorcidos como pesadelos.
Kurosawa, sempre perfeccionista, optou por não usar névoa fabricada, e adiou a produção até que a natureza “fizesse um acordo” com sua visão criativa.
Assim como a névoa, as expressões dos personagens precisavam ser autênticas.
Washizu (o personagem que corresponderia a Macbeth) no final do filme enfrenta não apenas um exército atacante, mas uma insurreição de suas próprias tropas.
As feições de terror de Toshiro Mifune (que interpreta o personagem) nas últimas cenas são reais pois, em determinado momento, flechas de verdade eram lançadas contra ele.
Influência do Teatro Nô
No filme, Kurosawa diz ter mostrado a cada ator uma máscara do teatro Noh que mais se aproximava do papel.
Para Toshiro Mifune, que fez o papel de Washizu (Macbeth), ele mostrou a máscara chamada Heida, que representa um guerreiro.
Para Isuzu Yamada, que interpretou o papel de Asaji (Lady Macbeth), ele mostrou a máscara Shakumi. Que representava uma mulher de beleza crepuscular prestes a enlouquecer.
Para o guerreiro (Minoru Chiaki) que foi assassinado por Macbeth-Washizu e que depois reaparece como um fantasma, Kurosawa mostrou a máscara Chujo, que representava um espírito.
A bruxa (Chieko Naniwa) na floresta foi representada pela máscara chamada Yamanba, a lendária bruxa da montanha no folclore japonês.