“Tabula Rasa” é uma composição de 1977 de Arvo Pärt, dividida em dois movimentos: “Ludus” e “Silentium”. Trata-se de uma composição para violino, viola, piano e orquestra de câmara. No primeiro movimento, temos dois violinos, e no segundo, uma combinação de violino e viola.

Entre todos os compositores clássicos, Pärt é o que mais se assemelha ao canto gregoriano. Sua música preenche todos os espaços, ao mesmo tempo em que faz do silêncio um de seus predicados. É sombrio e ao mesmo tempo acalantador.

No entanto, o canto presente na composição não é composto por vozes humanas, mas sim pelos arpejos sussurrantes do piano, pelos gemidos da viola e do violino, e pelo som glacial e matutino da orquestra de câmara, que preenche a atmosfera com uma nuance simultaneamente invernal e primaveril.

A música possui características sacras evidentes, e acredito que podemos perceber isso mesmo antes de tomar conhecimento da intenção religiosa declarada de Arvo Pärt. Em 1968, ele se converteu ao cristianismo ortodoxo e afirmou que toda a sua música é uma tentativa de comunhão com o divino.

Um artigo chamado “Consolations: Arvo Pärt”, escrito pelo crítico Alex Ross e publicado no The New Yorker em 2 de dezembro de 2002, menciona dois relatos interessantes sobre a composição “Tabula Rasa”*.

O primeiro relato é de um homem que recebeu um diagnóstico terminal de câncer e pediu a um amigo que lhe desse alguns CDs para que ele pudesse ter um pouco de música para ajudá-lo a passar as noites. Entre as gravações enviadas pelo amigo estava “Tabula Rasa”. Um ou dois dias depois, o homem ligou para agradecer ao amigo pelos discos e, principalmente, por Pärt. Nas últimas semanas de sua vida, ele praticamente não ouviu mais nada além dessa música.

O segundo relato mencionado por Alex Ross refere-se a um artigo de Patrick Giles, que relatou que, na década de 80, quando trabalhava como voluntário em uma organização que cuidava de pacientes com AIDS, ele tocava “Tabula Rasa” para aqueles que enfrentavam o ataque final da doença. Os moribundos pediam a Patrick para tocar a “música dos anjos” repetidamente, para que essa fosse a trilha sonora de sua passagem.

Não que a música de Pärt seja milagrosa. O destino dessas pessoas não deixou de ser terrível e, acredito, desesperador. Aqueles que sacralizam a música em si não fazem menos do que idolatria.

No entanto, esses dois relatos provam que existe sim uma partícula divina na música de Pärt, o que é muito evidente. A sensibilidade artística de Pärt, nesses dois casos, incorporou a prática da misericórdia corporal ao visitar e consolar os enfermos.

Em suma, Arvo Pärt é a resposta para aqueles que consideram a música pós-moderna (sim, ele é pós-moderno) uma música sem projeção ao divino. Vai por mim, você que não procurou direito.

(*) O artigo de Alex Ross pode ser lido aqui: https://www.therestisnoise.com/2004/04/arvo_prt_1.html

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