Os Homens que Pisaram na Cauda do Tigre é um filme escrito e dirigido por Akira Kurosawa em 1945 (mas só lançado em 1952), baseado numa peça kabuki chamada Kanjinchō (de Namiki Gohei III), que por sua vez é baseada numa peça noh chamada Ataka (de Kanze Nobumitsu).

Kanjinchō é uma das peças mais populares e repetidas do repertório kabuki moderno.

Ela foi apresentada pela primeira vez em 1840 e, desde então, foi executada com tanta frequência que se diz que os atores kabuki experientes consideram um insulto serem convidados para ensaiá-la.

Abaixo, um vídeo com o resumo da história da peça (em inglês) e partes de sua apresentação:

 

A história se passa no ano 1185, último ano do que ficou conhecido como período Heian no Japão, época em que a família Heike (também conhecida como Clã Taira) lutava contra a família Minamoto.

O período Heian (que foi de 794 a 1185) é considerado o período onde a corte imperial japonesa, o budismo, o taoísmo, a literatura e a poesia atingiram seu pico máximo de prestígio na sociedade.

Este período nobre, espiritualizado e artístico começou a degenerar lá pelo ano de 1156 com a Rebelião Hogen e se agravou no ano de 1160 com a Rebelião Heiji, duas guerras civis que foram pontuadas pela disputa de poder político.

A primeira tentava resolver uma disputa sobre a sucessão imperial e produziu a hegemonia dos clãs samurais Minamoto e Taira.  A segunda rebelião é uma decorrência direta dos resultados da primeira; aqui temos uma disputa entre os clãs samurais hegêmonicos (Minamoto e Taira), que vão se intensificar nas Guerras Tempei (entre 1180 e 1185)

Painel da Batalha de Genpei - Kanō Motonobu, pintor e calígrafo japonês.
Painel da Batalha de Genpei – Kanō Motonobu, pintor e calígrafo japonês.

Em Os Homens que Pisaram na Cauda do Tigre, acompanhamos Yoshitsume Minamoto, um general do clã Minamoto e uma das figuras mais notáveis da história japonesa.

Após uma sangrenta batalha, Yoshitsune Minamoto derrota o inimigo e os sobreviventes cometem suicídio.

Quando o triunfante Yoshitsune chega a Kyoto, seu irmão, o shogun Yoritomo, fica inquieto e ordena que seus homens o prendam.

Yoshitsune escapa com seis samurais leais liderados por Benkei (que é um ex-sacerdote budista) e partem numa jornada para se encontrar com Hidehira Fujiwara, seu único amigo.

Ao entrar numa floresta, eles, disfarçados de monges, pedem ajuda para um aldeão local guiarem eles até a fronteira da cidade a qual iria acontecer o encontro.

Perto da fronteira, depois de atravessar a floresta, seu aldeão e guia descobre quem eles são e avisa que o temeroso Kajiwara, um general leal ao shogun Yoritomo, tomou conhecimento que Yoshitsune e seus seis samurais leias estão disfarçados de monges.

Kajiwara, junto com seu exército, estaria de prontidão, esperando uma procissão de sete monges na fronteira para prendê-los.

Para despistar Kajiwara, Yoshitsune então se disfarça de aldeão e, chegando na fronteira, Benkei tenta convencer Kajiwara de que eles fazem parte de uma comitiva seis monges (e não sete, como eles estavam esperando) viajando para coletar doações para reparar o templo Todai em Nara.

Benkei, que já foi monge, utiliza-se do seu conhecimento sobre budismo para tentar enganar Kajiwara. Além de todo vocabulário religioso e um catálogo de rezas memorizadas, Benkei começa a ler um  Kanjinchō, um pergaminho que documenta os reparos do templo e que contém uma lista de assinaturas de pessoas que já contribuiram.

Existe um certo ponto cômico nesta história pois o pergaminho que Benkei começa a ler está em branco. Para enganar Kajiwara, ele improvisa uma leitura como se realmente houvesse algo escrito nele.

Cena do filme "Os Homens que Pisaram na Cauda do Tigre" de Akira Kurosawa, 1943
Cena do filme “Os Homens que Pisaram na Cauda do Tigre” de Akira Kurosawa, 1943

Geralmente histórias com personagens que utilizam da esperteza (e até da enganação) para contornar situações hostis, são histórias com origem popular. Aqui no Brasil, temos como exemplo o João Grilo, eternizado na obra O Auto da Compadecida de Ariano Suassuna.

O que acontece aqui é o casamento de um conto tipicamente popular com elementos da tradição aristocrática japonesa. Devemos lembrar que o personagem principal, Yoshitsune, é um nobre. Essa união de cultura popular, religião e tradição aristocrática é o que define basicamente a identidade de um povo.

Os Homens que Pisaram na Cauda do Tigre é basicamente a vitrine da identidade popular japonesa, o verdadeiro yamato-damashii (espírito japonês), muito além da caricatura feita pelo fascismo na Segunda Guerra Mundial.

Trata-se também de um dos filmes mais curtos e musicais de Akira Kurosawa.

Sua dramaturgia e sua história estão completamente voltadas para as tradições japonesas.

O filme alterna entre diálogos e cantos que conduzem a narrativa, como é típica do teatro japonês.

Em momentos chave do enredo, a feição do filme se alterna para um teatro noh explícito, com os atores fazendo movimentos lentos e controlados, ao som atmosféricos de flautas e tambores.

No entanto, não se trata meramente de uma filmagem de uma peça de teatro noh, mas sim um exercício criativo do que seria um teatro noh no contexto da linguagem cinematográfica. Ou seja, toda as características do teatro noh, como a dramaturgia típica e a música, estão contidas em elementos de edição, decupagem, perspectiva e fotografia típicas da linguagem do cinema.

Os Homens que Pisaram na Cauda do Tigre é o melhor exemplo de como seria um teatro noh dirigido por um cineasta.

Pela época em que foi feito e pelos valores que trazem consigo, esse filme foi inicialmente banido pelo general Douglas MacArthur, Comandante Supremo das Forças Aliadas, durante a ocupação americana no Japão no final da Segunda Guerra Mundial. Não foi o primeiro filme de Kurosawa a ser censurado pelos Estados Unidos, a Saga do Judô, seu primeiro filme, também teve sua exibição interrompida e só foi liberada anos depois – infelizmente diferente do corte original.

MacArthur tinha a incumbência suprimir qualquer sinal de “nacionalismo militarista” no país, inclusive na esfera cultural.

Apesar de não ter nenhum aspecto militarista ou mesmo nacionalista, o filme foi banido, provavelmente, devido ao seu retrato de valores feudais do Japão e uma noção de respeitabilidade mística com seus principes e imperadores.

O filme foi re-lançado mais tarde após a assinatura do Tratado de São Francisco em 1952.

Uma coisa interessante nessa história é que o personagem do aldeão guia não existe nas peças originais noh ou kabuki.

Isso foi uma ideia de Kurosawa.

Neste filme, a presença de um personagem de classe baixa entre os poderosos serve tanto para ancorar a história em um terreno familiar, quanto para viabilizar um certo alívio cômico.

No entanto, sua principal função é possibilitar a articulação de comentários livres e opniões que não seriam possiveis pela etiqueta de austeridade e solenidade de samurais e príncipes.

Esse tipo de personagem se tornou comum nos filmes do Kurosawa. Temos, por exemplo, o lenhador em Rashomon, o inesquecível Kikuchiyo (Toshiro Mifune) de Sete Samurais e o bobo de Ran.

São esses personagens que permitem que as histórias se desenrolem em aspectos multidimensionais, permitindo que Akira Kurosawa explore eventos e temas de múltiplas perspectivas.

Enfim, Os Homens que Pisaram na Cauda do Tigre é um filme muito interessante, suscinto, belo e que deveria ser mais lembrado do que é.

Trata-se, sem dúvidas, de um dos filmes mais subestimados de Akira Kurosawa.

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