Acho que não conheço nenhum cinéfilo que não reverencie as notáveis qualidades deste filme, mesmo não gostando do tema de máfia ou até mesmo nem gostando muito de Martin Scorsese.
No entanto, ainda vejo gente reticente, com acusações morais (ou moralistas) e piedosamente católicas da suposta romantização que esse filme faz ao universo da máfia e do crime.
Eu tinha a mesma opinião até ler a excelente crítica de Christopher B, Barnett e Clark J. Elliston em seu livro “Scorcese and Religion”.
Na contramão de todos os expectadores mais superficiais, esse livro define Goodfellas como uma das mais contundentes críticas à indústria cultural americana, especialmente ao cinema hollywoodiano – e uma das mais contundentes críticas de Scorsese a si mesmo.
Goodfellas utiliza a máfia para contar o modo como nossas memórias e nossas próprias vidas são mediadas pelos clichés de Hollywood.
O próprio diretor vai dando pistas que corroboram essa interpretação.
A primeira cena do filme é um flashback do protagonista, Henry Hill (Ray Liotta), onde ele conta sua história e o seu antigo sonho de entrar na máfia.
Scorcese utiliza sua matadora combinação de voice over e freeze-frame shot com bastante significado dramático e narrativo.
O freeze frame, popularizado desde a Nouvelle Vague, simula o modo como imagens e momentos intensos se congelam em nossas memórias (tal como a expressão, “aquilo ficou congelado na minha memória”).
Henry Hill, mesmo em uma situação de extrema violência, congela o momento e se torna expectador de suas próprias lembranças – reconfiguradas num aspecto fílmico.
Da mesma forma, o personagem Tommy (Joe Pesci), é retratado como alguém que não consegue saber a diferença entre Hollywood e a vida real. Em um ponto do filme, ele tenta reencenar uma cena violenta de um faroeste chamado The Oklahoma Kid e acaba atirando no pé de um garoto.
Mais tarde, o mesmo garoto o insulta e Tommy atira nele novamente, levando-o a morte.
Toda violência do filme é permeada de referências claras ao universo cinematográfico, onde heróis e bandidos parecem compor um universo que aqueles personagens tentam o tempo todo mimetizar.
O ponto é que não se trata de uma crítica moralista da violência no cinema, mas uma crítica genialmente paradoxal, pois Scorsese está plenamente consciente, o tempo todo, de que esse mesmo filme, Goodfellas, se tornaria a vitrine daquilo que supostamente aponta como falha – a glamourização fílmica do pecado.
Scorsese, como um bom católico (ou nem tanto, como todos nós), retoma um aspecto confessional (meio cínico, mas ainda sim confessional) e se torna um contundente crítico de sua própria obra.