Se pudéssemos resumir o cinema de Akira Kurosawa, podemos escolher as palavras: expansivo, meticuloso e particular.

A expansividade de Akira Kurosawa pode ser testemunhada tanto pela sua capacidade quase inigualável de universalidade, alcançando culturas e épocas distintas e se mantendo relevante nelas, quanto pela abrangência de grandes períodos históricos: das épocas mais antigas até as mais atuais.

A meticulosidade é atestada pelas histórias de bastidores. Poucos cineastas foram tão perfeccionistas e detalhistas quanto Akira Kurosawa.

A particularidade é evidenciada pela sua capacidade de amalgamar uma infinidade de influências e sintetizar tudo numa assinatura única e original. Quando Kurosawa, por exemplo, vai adaptar Macbeth de Shakespeare (como fez em O Trono Manchado de Sangue), ele não vai ambientar a história numa Escócia medieval, mas sim no Japão do século XVI.

Essas características mencionadas se articulam entre si em colisões dialéticas e produzem sínteses muito interessantes.

A expansividade encontra a particularidade quando Akira Kurosawa universaliza o tema do drama humano e político buscando suas referências no ocidente a ambientação no terreno que lhe é familiar: o Japão.

Em contrapartida, Akira Kurosawa devolve ao ocidente (ou melhor, ao mundo) uma vitrine do Japão que vai muito além de lutas de espadas. Ele mostrou, ao longo de seus filmes, revoltas camponesas, medos nucleares, militarismo, censura, fascismo, fome, pobreza, desigualdade, exploração e até mesmo problemas quotidianos.

Um dos filmes que mais evidenciam esse caráter político e denuncista de Akira Kurosawa é Não Lamento Minha Juventude.

Não Lamento Minha Juventude é um filme de 1946 escrito e dirigido por Akira Kurosawa, baseado no incidente de Takigawa em 1933.

Incidente de Takigawa (também conhecido como Incidente na Universidade de Kyoto), começou em outubro de 1932, quando um professor da Faculdade de Direito da Universidade Imperial de Kyoto, chamado Takigawa Yukitoki, fez uma palestra sobre a necessidade do judiciário em entender as raízes sociais dos comportamentos desviantes.

O momento culminante ocorreu em maio de 1933, quando o ministro da Educação, Hatoyama Ichiro, anunciou que a teoria de direito penal que Takigawa defendia era baseada em filosofias marxistas e, portanto, resolveu suspender seu ensino.

Vale lembrar que o partido comunista nesta época era ilegal no Japão e qualquer coisa que sinalizasse uma aproximação com essa ideologia era prontamente perseguida.

Em solidariedade a Takigawa, que nem era marxista, os restantes membros da Faculdade de Direito renunciaram aos seus cargos e os estudantes boicotaram as aulas e organizaram um movimento de protesto.

Em retaliação a toda essa movimentação, o Ministério da Educação então resolveu demitir Takigawa, o que apenas intensificou as animosidades entre professores, alunos e o governo e fortaleceu o movimento universitário do Japão pelas pautas de liberdade de expressão.

Akira Kurosawa, em Não Lamento Minha Juventude, ficcionaliza essa história para expressar suas ideias sobre liberdade.

Trata-se do primeiro filme de Kurosawa feito após o fim da Guerra do Pacífico, época em que o governo militar do Japão estava completamente dissolvido e havia uma certa brisa de democracia correndo correndo pelo país, mesmo que falsa, puramente retórica e dada em contextos completamente traumáticos.

Aqui acompanhamos a jovem Yukie, a única protagonista feminina de um filme de Kurosawa.

Ela é filha do professor Yagihara, personagem do filme que é diretamente inspirado em Takigawa Yukitoki.

Essa personagem faz uma jornada que vai metaforizar uma maturidade política.

No início do filme, Yukie vive em negação da situação social que afeta seu pai, que está sendo perseguido ideológicamente pelo governo por suas opniões anti-fascistas e por ser contra a participação do Japão na Guerra da Manchúria.

O que torna ela uma personagem interessante é que percebemos que os acontecimentos políticos do país, mesmo que ela tente não ver, afetam ela de uma forma difusa e isso se evidencia num sentimento de angústia não definida, que em muitos momentos transborda em crises de choro e agressividade.

É como se a política a cercasse o tempo todo e lhe cobrasse um posicionamento. Seja pela notícia de seu pai sendo demitido por opniões políticas, seja pelo encontro que ela teve com um soldado caído enquanto caminhava com seus amigos num parque.

Yukie vai se manifestar apenas quando um dos seus melhores amigos e o objeto de sua afeição, um jovem chamado Noge, é preso por sua atividade política.

Yukie então decide deixar sua vida de confortos e mimos pra trás e, viajar para o campo, para ficar mais próxima dos menos favorecidos em continência a luta de Noge.

O que é mais interessante é que Não Lamento Minha Juventude, apesar de ser um filme político, ele nem de longe se assemelha ao perfil do realismo socialista soviético, onde há a negação do indivíduo e do universo subjetivo de análise. Muito pelo contrário, todo panorama político apresentado no filme é condensado num âmbito de experiências pessoais e não coletivo.

Ou seja, a expansividade dos temas que Kurosawa trabalha são atomizados num núcleo individual e particular de um personagem – o que torna o filme muito mais poético do que panfletário.

Visualmente, Não Lamento Minha Juventude está entre os filmes mais atraentes de Kurosawa.

Kurosawa não tenta simplesmente mostrar as condições sociais e políticas voláteis que formam o pano de fundo do filme, mas nos possibilita sentir toda convulsão em formas mais sensíveis.

Em contraste com outras obras-primas, como Rashomon(1950) e Sete Samurais (1954), Não Lamento Minha Juventude é muito mais meditativo em sua forma; às vezes até poético – usando e abusando de metáforas e símbolos visuais.

Apesar de pontuar situações e fatos políticos, o filme não se resume a uma exposição panfletária. Muito pelo contrário. O diretor, mesmo assumindo uma postura militante, não abre mão de sua sensibilidade artística e trabalha com precisão os pormenores estéticos de sua narrativa.

Não Lamento Minha Juventude é onde a política entra em matrimônio com a poesia.

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