Desde o começo, sabíamos que Cowboy Bebop da Netflix não chegaria no mesmo nível do anime original. Trata-se de um produto derivado e, como tal, não acrescentaria nenhuma nuance ou significado especial.
Sabíamos desde o começo que seria difícil essa versão da Netflix trabalhar com profundidade temas como existêncialismo, xamanismo, niilismo e memória. Seu foco seria obviamente no estilo, no humor e na ação – algo condizente com a média do seu público.
Sabemos que uma adaptação live-action é uma produção muito mais complicada e exige uma infinidades de contrapartidas comerciais.
Muitas coisas devem ser resumidas, editadas, cortadas e, sim, modificadas.
Sendo uma boa homenagem, já iria valer a pena. Muito do valor de Cowboy Bebop é o estilo, e o design de produção da série parecia ser promissor.
No entanto, ao decorrer da série, vemos que a Netflix foi inserindo cada vez mais suas mudanças inoportunas e o resultado final é mais uma adaptação vacilante. Não tão ruim quanto Death Note, mas ainda muito aquém do que poderia ser feito.
A relação entre Spike, Faye e Jet está bem diferente do anime. Na versão da Netlix, eles parecem mais “buddies”.
Os personagens aqui são mais amigáveis e simpáticos. São versões mais palatáveis para que possam ser melhor digeridos pelo público geral.
No anime, havia uma espécie de pareceria sem companheirismo. Era muito estranho, mas fazia sentido, pois enfatizava a individualidade.
Faye, Spike e Jet não era um grupo, eles estavam juntos por contingência e acidente.
A nave Bebop fazia juz ao termo: um grupo pequeno formado por uma heterogenia de solistas, que improvisam e ao mesmo tempo orbitam um mesmo tema.
A versão da Netflix é apenas uma banda de Pop Rock ensaiada.
Spike Spiegel está bem repersentado no “coolness”, mas pouco representado no seu heroísmo melancólico, niilista e suicída. No entanto, o maior vácuo deixado foi em sua espiritualidade.
Não há nenhuma menção ao religiosidade xamãnica do personagem original. A ausência de Laughing Bull é imperdoável. Ele é guia espiritual do protagonista. As coisas começam nele e terminam nele. Ele profetiza tudo.
Faye está horrível!
É de longe o ponto mais fraco e problemático da série. Um total desrespeito com a personagem original.
Ela seria a personagem que calcularia o tempo todo as vantagens e desvantagens de cada situação para se manter viva tempo o suficiente e investigar seu passado. Ela não se importaria com Spike e Jet, apenas com sua monomania. Na versão da Netflix, ela ganha nuances heróicas. Vira uma espécie de Rey da série Star Wars (e isso nem de longe é um elogio).
A descoberta de sua infância (um dos arcos mais bonitos de Cowboy Bebop original) virou uma coisa totalmente vazia e protocolar.
Fora isso, teve que cumprir o checklist da Netflix de colocar romance homossexual fora de contexto.
Chega a ser engraçado o quão pateticamente caricato e previsível isso se tornou em ABSOLUTAMENTE TODAS as produções da Netflix.
Não é a sexualidade dela que incomoda – no anime original ela chega até se envolver com um um sujeito intersex (Grencia, que na série da Netflix, ironicamente, tem um papel muito secundário) – o que incomoda é a maneira que isso aconteceu.
A personagem original não cria vínculos afetivos com ninguém e muito menos expõe seus traumas para outra pessoa. Na versão da Netflix, ela faz isso com uma pessoa que nunca viu antes, uma mulher – depois de terem relações sexuais.
Por algum motivo, os produtores da Netflix acreditam não há força no universo mais forte do que o sexo homoafetivo – capaz de aliviar traumas e tudo mais.
Nem vale a pena comentar a introdução de Ed.
Recomendamos que assista a animação original. Aliás, escrevemos um artigo sobre ela aqui.