Todo mundo concorda que o mais importante filme de zumbi é Night of the Living Dead de 1968, dirigido por George Romero. Não sou eu quem vai dizer o contrário. O filme é completo. É uma boa ficção-científica, é um bom filme de terror e também um bom filme político.

No entanto, há outros dois filmes de zumbi que poderia colocar no páreo com este. O primeiro é The Serpent and the Rainbow de 1988, do imortal Wes Craven (o homem que revolucionou o slasher duas vezes em Nightmare on Elm Street e Scream) e o outro é o impressionante I Walk With the Zombie de 1943, do diretor franco-americano Jacques Tourneur, que tem no currículo um dos filmes B mais interessantes que já vi: Cat People.

Diferente do viés de ficção-científica do clássico de George Romero, estes dois filmes tratam do tema numa perspectiva mitológica de horror folclórico.

Em outro momento eu vou comentar sobre The Serpent and the Rainbow pois faz um tempo que não vejo esse filme e gostaria de revê-lo. Dá última vez que assisti foi em decorrência da notícia da morte de Wes Craven em 2015. O assunto estava em voga e eu queria revisitar o universo do diretor.

Meu foco aqui será falar sobre I Walk With the Zombie, que acabei de assistir.

Acompanhamos aqui uma enfermeira canadense chamada Betsy Connell (interpretada por Frances Dee) que viaja até a ilha afro-caribenha de São Sebastião para cuidar de Jessica Holland (Christine Gordon), esposa de Paul Holland (Tom Conway), proprietário de um engenho de açúcar.

A população da ilha é majoritariamente composta por descendentes de escravos africanos. Eles praticam seus rituais vodu a noite, no meio do mato e aos arredores da propriedade.

O som dos batuques e dos cantos parecem engolir toda atmosfera do filme num perfume místico, estimulando medo e curiosidade em todos – especialmente nos expectadores.

Jessica está em um estranho estado catatonico – ela não responde a estimulos, tal como estivesse morta – ao mesmo tempo que anda pela propriedade e aos arredores, como se estivesse viva e procurando algo – num estado incomum de sonambulismo.

O tema do zumbi, por si só, é um tema que imperativamente evoca o mote da ambiguidade. Além da inerente ambiguidade “morto-vivo” temos neste filme a ambiguidade branco-negro, europa-africa e ciência-misticismo. Ambiguidades que parecem tentar oscilar entre o conflito e a convergência na busca de um acordo dialético de cosmovisão.

A cosmovisão branco-científica está em disputa com a negra-mística em tentar entender se Jessica está neste estado por causa de uma doença caribenha desconhecida ou por que foi enfeitiçada.

Embora tenha recebido críticas mistas após seu lançamento, as avaliações retrospectivas se mostraram gradativamente mais positivas – sendo considerado, inclusive, um dos melhores filmes de zumbi de todos os tempos pela Stylus Magazine.

O filme tem uma iluminação impressionante, trabalhando muito bem as sombras e as silhouetas, reforçando a atmosfera afro-gótica de mistério.

O filme também foi se tornando objeto de estudo para além do universo do cinema, sendo analisado por seus temas de escravidão e racismo, e por sua representação de crenças associadas às religiões da diáspora africana, particularmente o vodu haitiano.

Sobre  o racismo, o historiador e autor Alexander Nemerov afirmou que o filme usa a quietude como uma metáfora para a escravidão. Para ele, o personagem Carrefour (interpretado por Darby Jones) é uma expressão dessa metáfora: um zumbi que se mantém monumentalmente estático e emudecido o tempo todo, assustando apenas pela sua presença.

Carrefour é um personagem fascinante. Ele é um homem zumbificado ao mesmo tempo uma espécie de guardião, quase como uma entidade mística totêmica.

Sobre a tratativa da religião, o escritor Jim Vorel diz que I Walked with a Zombie não apenas os retrata com surpreendente precisão e dignidade a religião vodu (toda mitologia do filme teve a supervisão de um folclorista chamado Leroy Antoine), mas avalia como essas crenças poderiam ser cooptadas pelo homem branco como mais um elemento de controle sobre as vidas dos habitantes da ilha (uma das personagens assume que se aproximou dos habitantes locais fingindo estar interessada em suas crenças, apenas para manipulá-los, algo que se vê muito em meios progressistas universitários).

A última cena do filme, surpreendentemente pouco comentada, é belíssima. Temos a confirmação de que Jessica é um zumbi e o que ela estava procurando o tempo todo era o descanso na morte. O filme termina com uma oração (uma oração cristã mesmo, cantada pelos feiticeiros vodu – belíssimo) e uma meditação sobre a beleza da finitude.

Enfim, um dos melhores filmes do gênero e que obviamente exerceu uma influência muito grande em Corra! de Jordan Peele.

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