Por muito tempo na filosofia, a realidade foi o domínio daquilo que é objetivo, independente das nossas crenças ou percepções individuais. Ela se baseava em fatos e fenômenos que “existem” independentemente da nossa consciência.
Isso significa que o exercício filosófico trouxe para nossa percepção o elemento do “dado”, que é um “algo” de valor epistêmico e que vive em alteridade (ou seja, está fora de nós).
Percebam que a grande novidade da filosofia, que iria se revelar com mais clareza na modernidade, está oculta nessa dinâmica.
A dissonância e o interfluxo entre a realidade e a minha percepção da realidade, que a filosofia tenta corrigir ou amenizar, é basicamente a dissonância entre o “dentro” e o “fora”, do mundo subjetivo e do mundo objetivo.
Isso significa que as noções de “indivíduo” e “sujeito” sempre estiveram embrionárias desde a filosofia antiga.
Não podemos dizer que homem não estava “enclausurado na individualidade” antes do mundo moderno. Talvez o mais correto a se dizer é que ele sempre esteve nesta clausura e foi só com o advento da filosofia moderna que ele se deu conta disso. Que ele conseguiu nomear a clausura que o aprisionava.
Entender isso é entender que quase toda boa filosofia (e a modernidade tem boa filosofia) não é inventada, mas descoberta. Dado as condições do desenvolvimento intelectual ocidental, iríamos chegar nas mesmas conclusões, hora ou outra.
A dúvida metódica de Descartes, que basicamente inaugurou o mundo moderno, é a pura filosofia apercebendo-se de sua condição própria e inata. Tal como um indivíduo que se apercebe como individuo.
Se a humanidade se desfazer da modernidade, como propõe os tradicionalistas mais incendiários (que são basicamente revolucionários), estará “condenada” a repeti-la.
Isso por que todo pensamento se nutre num mergulho introspectivo, numa longa relação centripeta com os dados objetivos e numa tendência de subjetividade, querendo eles ou não.
Não dá pra recriar o mundo grego ou o mundo medieval, com todos os seus espectros, sem fazer moldá-lo numa paródia.
Você pode destruir a modernidade, mas no momento momento seguinte, o homem estará sob as ruínas (utilizando um termo corrente neste meio), ainda estupefato na contemplação da estranheza do seu mundo interior e descobrirá, novamente, o eu.
Ele descobrirá novamente que em todo ver, alguém vê, que em todo amar, alguém ama e que em todo pensar, alguém pensa. A este alguém chamamos de “eu”. Eu vejo, eu amo, eu penso – logo existo.
Esqueçam, não dá mais pra destruir isso.
O homem antigo erra ao ignorar seu próprio ser e sua subjetividade e o homem moderno erra ao considerar seu próprio ser e sua própria subjetividade como o mais insuspeito continente.
O mais sensato a se fazer é tentar conjulgar as qualidades do homem antigo com o homem moderno e também avaliar suas próprias deficiências e erros.
Parem de assumir a perspectiva pagã de que existe de fato Kali Yuga e os ciclos cósmicos da metafísica indiana (com todo respeito aos que aderem isso com honestidade) ou, por favor, pelo menos reconsiderem se isso não é apenas uma afetação de exotismo.
O conservador reformista e o revolucionário moderado são chatos e sem graça, mas estão corretos. A tradição e a modernidade devem aparar as arestas das sas contradições no campo da verdade, que é a única coisa que de fato importa.
José Ortega y Gasset disse que na vida do espírito, só se supera aquilo que se conserva – como o terceiro degrau supera os dois primeiros porque os conserva embaixo de si. Ao passo que se esses desaparecessem, o terceiro degrau cairia e voltaria a ser o primeiro.
Na história, toda superação implica uma assimilação: há de tragar-se o que se vai superar, trazer para dentro de nós precisamente o que queremo abandonar, ou à parte que queremos abandonar.
Eu não quero destruir o mundo moderno, quero sublimá-lo.