Hoichi “sem-orelhas” é uma figura conhecida do folclore japonês;
Sua história foi registrada e conhecida no ocidente através do livro Kwaidan: Stories and Studies of Strange Things, de Lafcadio Hearn.
O texto-fonte usado por Hearn foi identificado como o trabalho de Isseki Sanjin intitulado “A música secreta de Biwa que fez o Yurei lamentar” , na série Gayū kidan.
Segundo a lenda, Hoichi era um menestrel cego com um dom incrível para o biwa (uma espécie de alaúde japonês). Sua fama se assentava especialmente na representação do Conto do Heike, um épico que descreve a queda do Imperador Antoku, que está enterrado no Templo Amidaji. Suas apresentações eram tão maravilhosas que diziam que até mesmo os fantasmas não conseguiam conter as lágrimas.
Apesar de seus talentos, Hoichi era muito pobre e foi forçado a viver no Templo Amidaji com um monge amigo.
Segundo a história, Hoichi foi abordado tarde da noite por um samurai rude que exigiu que o menestrel tocasse para seu senhor. O lacaio conduziu o cego Hoichi para o que parecia ser a casa de algum daimyō poderoso, onde uma apresentação do Conto do Heike foi solicitada.
A performance de Hoichi foi recebida com muitos elogios e levou seu público às lágrimas, e ele foi convidado a retornar na noite seguinte para um recital de acompanhamento.
Antes que Hoichi fosse devolvido ao templo, ele foi informado pelo samurai de que o nobre para quem ele tocava estava viajando disfarçado e ordenou para ele não falar sobre os acontecimentos da noite.
Na noite seguinte, o samurai voltou aos aposentos de Hoichi e o levou de volta ao nobre. No entanto, desta vez a ausência de Hoichi foi descoberta por seu amigo, o sacerdote do Templo Amidaji. O monge ficou desconfiado e instruiu seus servos a cuidar de Hoichi na noite seguinte.
Quando o viram saindo do templo, os servos o perseguiram e finalmente encontraram Hoichi tocando seu biwa no meio do cemitério do Templo Amidaji, onde está enterrado o Imperador Antoku.
Hoichi estava tocando para a corte imperial fantasma do Imperador Antoku.
Quando o arrastaram de volta ao templo, Hoichi explicou os acontecimentos da noite anterior ao sacerdote.
O monge então concluiu que Hoichi havia sido enfeitiçado por fantasmas.
De acordo com a tradição, uma vez enfeitiçado pelos mortos, a pessoa acaba por ficar sob seus poderes e, caso não mais os obedeça, é destruída.
Em suma, Hoichi foi amaldiçoado pelo seu talento.
Para proteger seu amigo, o monge pintou o corpo de Hoichi com o Sutra do Coração e o instruiu a permanecer em silêncio e imóvel quando fosse chamado pelo samurai.
Naquela noite, o samurai chamou por Hoichi como antes e ficou furioso quando não recebeu resposta.
O samurai fantasmagórico se aproximava de Hoichi, mas, por conta do seu corpo estar protegido com o Sutra do Coração, não conseguia ver nada além das suas orelhas – as únicas partes do seu corpo que os monges não pintaram.
Tentando cumprir suas ordens, o samurai arrancou as orelhas de Hoichi como prova de que ele fez o melhor que podia.
Depois que o samurai fantasmagórico partiu, Hoichi se manteve estoicamente imóvel, mesmo com sangue jorrando dos ferimentos em sua cabeça.
Quando o monge voltou, ele percebeu, consternado, que havia se esquecido de escrever o sutra nas orelhas de Hoichi, o que as deixou vulneráveis ao espírito.
Apesar de sua lesão, a provação de Hoichi o libertou do poder do espírito; ele se recuperou de seus ferimentos e se tornou um músico famoso – Hoichi “sem orelhas”.
Além da exposição das virtudes da não-ação, muito valorizado no budismo, o conto nos apresenta uma interessante noção da transcendência da arte e do poder, e que ambas podem se tocar no limiar dos mundos.
O Sutra do Coração
O Sutra da Perfeição da Sabedoria ou Sutra do Coração é um conhecido sutra budista mahāyāna.
Ele é notável por sua sua brevidade, concisão e claridade. Alem de ser um dos mais fáceis de entender, não é difícil ter o texto completo do sutra em uma única página.
Existem algumas passagens do sutra que podem ter contriubido para que Hoichi se mantivesse estoicamente silêncioso e imóvel, mesmo quando suas orelhas estavam sendo arrancadas violentamente pelo fantasma.
O sutra enfatiza a indistinguibilidade entre forma e vazio, que pode ser interpretado no contexto do Hoichi como a indistinguibilidade entre dor e não-dor:
Forma não é mais que vazio
Vazio não é mais que forma
Forma é extamente vazio
Vazio é exatamente forma
(…)
Todos os fenômenos são vazio-forma,
Não nascidos, não mortos,
Não puros, não impuros,
Não perdidos, não encontrados
Assim é tudo dentro do vazio.
Sem forma, sem sensação,
Conceituação, diferenciação, conhecimento;
Sem olhos, ouvidos, nariz, língua, corpo, mente,
Sem cor, som, cheiro, sabor, tato, fenômeno.
Sem mundo de visão, sem mundo de consciência,
Sem ignorância, sem fim à ignorância,
Sem velhice e morte e sem fim à velhice e morte.
Sem sofrimento, sem causa, sem extinção e sem caminho.
Sem sabedoria e sem ganho.
Sem nenhum ganho.
Bodisatva
Essa compreensão absoluta do “esvaziamento que preenche” e do “preenchimento que esvazia” (a não distinção entre forma e vazio) só é possível alcançar num estado de elevação espiritual e introspecção meditativa.
O sutra no conto cumpriu uma função mágica, tornando o corpo físico de Hoichi invisível ao fantasma, mas também cumpriu sua função espiritual – tornando-o sobrenaturalmente indiferente a violência que sofria.
Hoichi sofria, mas não se identificava com a dor.
Hoichi tinha suas orelhas, mas suas orelhas não eram Hoichi – ele poderia perdê-las para se salvar.
Existe uma correspondência dessa sabedoria na verdade revelada por Cristo, que muitas vezes é terrivelmente incompreendida:
“Se o seu olho direito o fizer pecar, arranque-o e lance-o fora. É melhor perder uma parte do seu corpo do que ser todo ele lançado no inferno.”
São Mateus 5:29