Por que os ítalo-americanos amam os Sopranos
Em 1991, Camille Paglia publicou “Personas Sexuais”, que é essencialmente a sua dissertação de Yale feita sob a égide do eminente estudioso Harold Bloom. O livro, em suas palavras: “… pesquisa a literatura e a arte desde a antiguidade até o final do século XIX.”
Paglia não é simplesmente um historiadora e comentarista de arte. Ela é uma filósofa e cientista social.
“Personas Sexuais”, embora não seja escrito no estilo acadêmico típico, é um trabalho acadêmico que combina uma tese fundamentada com pesquisa documentada de fato. Especificamente, sua tese é “demonstrar a unidade e continuidade da cultura ocidental”, para a qual ela fornece dados de apoio volumosos e significantes interpretações de tudo que analisa.
Um dos objetos de estudo de Paglia é a ‘androginia’ – uma das muitas características que aparecem ao longo da história da arte e literatura ocidental.
Androginia na arte e cultura ocidental
Androginia em sua definição mais simples é: “a mistura de características masculinas e femininas”.
Na Grécia Antiga, a andrógina Atena é representada em formas masculinas ou femininas distintas. Às vezes, a deusa aparece como uma mulher e às vezes como um homem. “Na Ilíada, Atenas aparece quatro vezes como homem e seis vezes em sua própria forma.” Na Odisséia, “ela aparece oito vezes como um homem, duas vezes como uma garota humana, seis vezes como ela mesma”.
Durante a Renascença, a arte andrógina se manifesta na figura do belo menino e é “repetido em mil formas na pintura e escultura italiana”. Ele é o “símbolo máximo da arte renascentista”; exemplificado por excelência por Donatello.
Paglia não se contenta em simplesmente descrever a evolução das imagens andróginas na arte ocidental. Ela busca demonstrar como essas imagens estão associadas aos valores sociais da época.
A androginia de Atena simboliza a mente adaptativa, a capacidade de inventar, planejar, conspirar, enfrentar e sobreviver – todos os valores sociais fundamentais para a cultura grega. Da mesma forma, a arte andrógina do “menino bonito” da Renascença se correlaciona com os valores sociais da época, como os modos corteses.
Androginia e programas policiais de TV
Os conceitos e métodos usados por Paglia para analisar a arte clássica e renascentista podem também ser extrapolados e usados para analisar a arte pop contemporânea. Sobre a questão da androginia, por exemplo, os programas de crime na TV manifestam claramente uma predisposição para representar personagens andróginos: ou seja, mulheres masculinizadas e homens feminizados.
Personagens andróginos podem ser vistos em praticamente todos os principais programas policiais da TV. As mulheres, agentes do FBI, investigadores e detetives, têm ‘cabelos grandes’, lábios inchados, olhos brilhantes, rostos pintados, corpos de modelo, usam decote, salto alto e roupas que delineiam suas curvas. No entanto, elas também têm vozes roucas e profundas, falam em linguagem de rua de “cara durão”, ostentam suas armas nos quadris, são especialistas em artes marciais, lideram equipes em tiroteios, bebem cerveja em bares policias predominantemente masculinos.
Nos mesmos programas estão igualmente misturados personagens masculinos andróginos que são cavalheiros de fala mansa, que não manifestam nenhuma característica masculina poderosa, como músculos ou postura dominante. As armas são escondidas por paletós. Em suma, como os cortesãos de Castiglione, eles têm “graça”, “beleza” e uma ausência completa de características a la Clint Eastwood.
O que a onipresente mistura de personagens andróginos nos crimes de TV mostra sobre nossa cultura? Uma teoria é que essas formas de arte “lowbrow” são um reflexo da filosofia feminista prevalecente em nossa sociedade. Paglia caracterizou pejorativamente o feminismo contemporâneo como: “os homens devem ser como as mulheres e as mulheres podem ser o que quiserem”, mas refletem a constante tendência a androginização da arte ocidental. A androginia, apesar de ser uma combinação entre o masculino e o feminino, se manifesta ativamente no cancelamento da concentração e projeção masculina.
The Sopranos – a anulação da androgenia e a total concentração e projeção masculina
Categoricamente justaposto aos programas policiais de TV como “Numbers”, “Without a Trace”, “CSI-New York”, “CSI-Miami” e “Criminal Minds” está The Sopranos. Não há nada remotamente andrógino nos personagens deste programa. Todos os personagens são quintessenciais e inequivocamente masculinos ou femininos. Os homens usam camisetas regatas que mostram corpos musculosos e tórax cabeludos. Eles são manifestações de total “concentração e projeção masculina”. Da mesma forma, as ‘mulheres são mulheres’, totalmente femininas, praticamente sem características masculinas.
Por que os ítalo-americanos amam os sopranos
Uma das questões mais incômodas que foram discutidas “ad infinitum” é por que o retrato “ostensivamente negativo” dos ítalo-americanos na série The Sopranos é tão popular entre os próprios ítalo-americanos.
Mais uma vez, recorremos a Paglia – uma poderosa pensadora ítalo-americana – para resolver essa questão.
Ela escreve que o cancelamento da “concentração e projeção masculina” (visto em outros programas) prevalece apenas como valor entre “acadêmicos e escritores burgueses, enclausurados nos departamentos das suas universidades”. Essa ideia se dissolve em minutos da rua pra fora, onde a concentração e a projeção masculina são visíveis em toda a parte, na energia agressiva das ruas.
As reclamações sobre Sopranos ser um programa preconceituoso contra italo-americanos vieram em grande parte dos literatos brancos anglo-saxões aburguesados. Os ítalo-americanos na “garagem da esquina” e “na rua” amam o programa porque veem a pedra angular fundamental de sua cultura retratada nas imagens de ‘homens são homens’ e ‘mulheres são mulheres’. Esses modelos masculinos e femininos são os modelos históricos que remontam ao sul da Itália e à Sicília.
A cultura americana contemporânea, acelerada por natureza, está redefinindo esses modelos de comportamento – mas esquecem que outras culturas não acompanham seu mesmo rítimo de mudança.