Quando Adão e Eva são desterrados do Jardim, a primeira coisa que descobrem são suas próprias pessoas. Dão-se conta de si mesmos, descobrem a existência de seu ser e sentem vergonha por estarem nus. E porque descobrem que estão assim, cobrem-se.
Para José Ortega y Gasset, essa vergonha passa longe de ser mera vergonha do sexo (como geralmente se fala), mas algo muito mais complexo, relacionado à descoberta da consciência do ‘eu’ e das condições nas quais essa consciência foi despertada.
Notem: aqui o cobrir-se é consequência imediata do descobrir-se.
Pelo visto, quando o homem encontra sua consciência, sua subjetividade, compreende que esta não pode existir à tona, em contato com o exterior, como a rocha, a planta, o bicho, mas que o ‘eu’ humano o é porque se separa do entorno, fecha-se para ele.
O Adão paradisíaco é sucedido pelo Adão gemesmundo e ensimesmado.
O ‘eu’ é ser encoberto, íntimo e o traje é o símbolo fronteiriço entre o que eu sou e o resto.
Essa consciência do ‘eu’ resultou na urgência do seu ocultamento, pois ela veio através de uma desobediência das leis superiores.
Veja como a filosofia moderna já tinha sido mapeada nas escrituras sagradas, quando a consciência ‘eu’ se vincula com o rompimento de uma aliança, isolando este ‘eu’ tanto das outras coisas como do próprio Deus.
Veja também que o problema não está na concepção do ‘eu’, mas do ‘eu solitário’.
Nem mesmo Deus tem um ‘eu’ solitário, sendo, na visão cristã, trino.
Quando o ‘eu’ fica solitário, ele tenta engolir em si o Universo e, por conta disso, incha como um tumor.
Descartes constituiu no ‘eu’ a primeira verdade teórica e as filosofias que o sucederam uma concepção de eu que não seria apenas parte do universo, mas o próprio criador dele.
Perceba que o ‘penso, logo existo’ pode implicar em dizer que as coisas existem só porque eu penso nelas.
O homem se torna uma paródia de Deus.
O mais incrível dessa história é que encontramos nas próprias escrituras a realização exata desta profecia: ‘comereis deste fruto e sereis como Deus’.