Varuna e o mundo espiritual védico

Varuna foi uma das divindades mais importantes dos antigos indianos durante a época védica.

Ele presidia as águas do céu e do oceano e era o guardião da imortalidade. Devido a isso, possuía um conhecimento infinito.

Varuna organizou os ciclos do Sol, colocou cada rio em seu caminho, ordenou as fases da Lua, estruturou o relevo da Terra e se encarregou de nunca deixar o oceano cheio demais. Por tudo isso, ele se tornou o rei dos deuses e pôde dominar também o destino dos homens, sustentando a vida e protegendo-a do mal.

Varuna, como diz Mircea Eliade, reina sobre o mundo, os deuses regentes (devas) e os homens. Ele, segundo o mito, “esticou a Terra como um açougueiro a uma pele, para que ela seja qual tapete ao Sol”. Pôs “o leite nas vacas, a inteligência nos corações, o fogo nas águas, o Sol no céu, o soma sobre a montanha”.

Cosmocrata, possui certos atributos dos deuses celestes: é visvadarsata, “visível por toda a parte” e onisciente.

Ele tem “mil olhos”, denominação mítica das estrelas. Como “tudo vê” e nenhum pecado lhe escapa, por mais escondido que esteja, os homens sentem-se “como escravos” em sua presença.

Porém, um grande monstro desafiou os deuses e também Varuna. Uma profecia revelou que Varuna não poderia vencê-lo.

O único capaz de vencer o monstro seria Indra, que ainda nasceria e, após vencer, tomaria o lugar de Varuna.

Varuna, temendo perder sua posição, tentou impedir o nascimento de Indra, mas foi impossível.

O jovem deus nasceu e, tendo poder sobre os raios e tempestades, venceu o monstro e se tornou o novo rei dos deuses.

Varuna então se tornou o rei dos oceanos e senhor da Noite, dividindo o céu com Surya, o deus do Dia.

Varuna é um termo sânscrito referente a uma divindade védica, “Senhor da Consciência Vasta”, representando a pureza etérea e a amplidão oceânica da “Verdade Infinita”. Ele destrói tudo o que interfere adversamente no crescimento da consciência e da verdade na mente do ser humano.

Varuna também é chamado de passabrit, “senhor do nó corrediço”. Esse epíteto revela uma das características mais relevantes deste deus. Os nós simbolizam a capacidade de prender ou libertar, de dar vida ou tirá-la. Segundo o pensamento antigo, laços e nós podem dar vida a coisas inanimadas por meio de magia.

Com os laços e nós, Varuna prendia e castigava os homens ímpios, mas também era célebre por sua delicadeza e polidez, estando pronto a perdoar os arrependidos, inclusive os inimigos declarados.

De uma perspectiva cristã, da qual não consigo me separar, a figura de Varuna me parece complexa em diversos aspectos e, em certo sentido, se assemelha bastante com Deus, sendo um ordenador primevo que alterna entre compassividade e punição aos ímpios.

O que separa Deus de Varuna é que sua soberania é substituível, e isso provavelmente nos revela as diferenças em como olhamos o mundo material e o mundo eterno.

Os cristãos acreditam na mutabilidade e contingência do mundo material, enquanto o mundo celeste se mantém fixo e fora do tempo, traduzido na proximidade do Alfa e Ômega representados em Deus.

No mundo hindu (e em outras culturas), a transcendência parece estar sujeita a certa contingência. Por isso, em suas cosmogonias, deuses aparentemente soberanos (e até criadores) são trocados por outros.

Varuna, apesar de todos os notáveis prestígios que lhe foram atribuídos, deu lugar a Indra. Tal como Amon, Rá e Atom na mitologia egípcia.

No entanto, a dificuldade de entender Varuna, para um cristão curioso que sou, deve-se ao fato de eu tentar constantemente relacioná-lo com a ideia que conheço dos atributos de Deus e, acredito eu, isso esteja até incorrendo num pecado de idolatria: ou seja, atribuir as características de Deus a tudo aquilo que não é Deus.

Essa relação é recíproca; acredito que sábios hindus achem igualmente nossa noção de Deus demasiadamente complexa, especialmente pelo fato de nós decantarmos na figura Dele a ideia do “ser” e do “existir”.

Para um cristão, entendemos Deus como criador, cosmocrata, eterno e soberano. Em outras culturas, essas características de Deus parecem estar um pouco mais fragmentadas.

Varuna continua sendo eternamente cosmocrata mesmo não sendo eternamente soberano.

É estranho, pelomenos para um cristão, pensar que um deus criador pode não ser cosmocrata, que um deus cosmocrata pode não ser necessariamente eterno, que um eeus eterno pode não ser necessariamente um deus soberano e, ao mesmo tempo, que um deus soberano pode não ser um deus criador.

A ideia de Varuna se liga a duas noções religiosas excepcionais do texto védico: “rta” e “maya”.

O vocábulo “rta” é o particípio passado do verbo “adaptar-se” e “maya” deriva da raiz “may”, que significa “mudar”.

A sutileza e, ao mesmo tempo, complexidade do que significa essa ideia de mutabilidade neste contexto parece evocar uma infinidade de ideias difíceis de concatenar, mas parecem sugerir uma ideia de movimento que entra em conformidade com os ciclos da natureza e uma percepção de mundo espiritual como uma espécie de “mundo natural mais elevado”.

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