Inanna, a Deusa da Vida e das Infinitas Manifestações da Existência na Mesopotâmia

Inanna, conhecida como “Senhora do Céu” na antiga Mesopotâmia, era uma das divindades mais poderosas e complexas do panteão sumério. Associada ao amor, à fertilidade, à guerra e ao poder real, ela personificava as dualidades da existência — a criação e a destruição, a paixão e a vingança, a luz e as sombras.

Seu culto remonta ao terceiro milênio a.C., e suas histórias, registradas em tabletes cuneiformes, revelam uma deusa impulsiva, ambiciosa e profundamente humana em suas contradições.

Uma das características mais marcantes de Inanna era sua essência feminina volátil. Diferente de divindades estóicas ou previsíveis, seu comportamento oscilava entre extremos: era capaz de bondade e misericórdia profundas, mas também de ressentimento e vingança implacáveis.

Entre suas histórias mais conhecidas está o romance com o pastor Dumuzi, que se tornou soberano de Uruque. Inanna dedicava-lhe poemas de amor e erotismo, os mais belos do mundo antigo, mas também o alertava sobre o trágico destino que os aguardava:

“Oh, meu amado, homem do meu coração, arrastei-te para um desejo funesto. Tocaste meus lábios com tua boca, apertaste minha cabeça contra teu peito — e por isso foste condenado a um destino funesto.”
(Le rite du mariage sacré Dumuzi-Inanna, Samuel-Noah Kramer)

O “destino funesto” se concretizaria quando Inanna decidiu descer ao Submundo para enfrentar sua irmã mais velha, Ereshkigal — a deusa do mundo inferior, marcada pela violência e pelo ódio à luz. Inanna, confiante em sua beleza e no amor recém-descoberto, acreditava que poderia substituir Ereshkigal e transformar o reino das trevas em um lugar menos cruel.

No entanto, ao atravessar os sete portais do Submundo, Inanna foi obrigada a despojar-se de cada jóia e vestimenta, até chegar nua e vulnerável diante de Ereshkigal. Ali, descobriu que seu poder não era intrínseco, mas sim externo: dependia dos adornos que carregava, assim como os homens usavam símbolos para afirmar domínio. Pior ainda, percebeu que, em sua nudez, não era tão diferente da irmã que desprezava.

Após três dias de agonia, Inanna foi resgatada por sua fiel serva Ninshubur, mas as leis do Submundo exigiam um substituto para ocupar seu lugar. Ao retornar a Uruque, escoltada por demônios (galla), deparou-se com Dumuzi celebrando em seu trono, indiferente ao seu sofrimento. Cega de dor e traição, Inanna apontou para ele, entregando-o aos demônios. Assim, cumpriu-se o destino que ela mesma pressagiara.

A narrativa revela a ironia do fatalismo mesopotâmico: Inanna sabia do destino de Dumuzi, mas ainda assim surpreendeu-se com sua própria impotência e com a ingratidão do amado. É uma história que inverte o mito da caverna de Platão — em vez da ascensão à luz, há um mergulho nas sombras da condição humana.

Por fim, o mito de Inanna não só ilustra a volatilidade do feminino divino, mas também serve como advertência: quem desconhece sua própria natureza está fadado a ser vítima de suas ambições.

Comente aqui

Newsletter Semanal

Categorias

Asssuntos

Posts

Último Episódio

Quem faz

O podcast é apresentado por Gabriel Vince. Já foi estudante de filosofia, história, programação e jornalismo. Católico, latino e fã de Iron Maiden. Não dá pra ser mais aleatório que isso.

A Importância dos Olhos em Blade Runner (1982, Ridley Scott)
A candeia do corpo são os olhos; de sorte que,...
Teshub e o sincretismo religioso da Ásia menor
Teshub era o deus hurrita do clima e o chefe...
A Espera, de Keum Suk Gendry-Kim
Keum Suk Gendry-Kim é uma escritora e quadrinista sul-coreana. Ela...
Como o homem religioso pensa o mundo?
Antes de ler Eliade eu tinha uma suspeita que o...
Rolar para cima