As serpentes e as ambivalências da religião indiana

Mircea Eliade vê nos deuses hindus uma complexa ambivalência e considera essa ambivalência uma característica típica do pensamento religioso indiano, que pode soar para nós, ocidentais educados no rigor da lógica, como contraditória.

Essa ambivalência é notada por ele em deuses como Agni, qualificado como “serpente furiosa”.

Segundo o cânone literário do Livro dos Hinos (Rig Veda), Agni é a “forma visível” da “serpente invisível” Ahi.

Segundo o Veda, a serpente é uma virtualidade do fogo, ao passo que as trevas são “a luz não manifestada”.

Percebam aqui as ambivalências extremas dos termos em questão, como “a forma visível do invisível” ou as trevas como “luz não manifestada”.

Se Chesterton define o Cristianismo como a religião dos paradoxos, a religião indiana parece, à primeira vista, ser a religião da dubiedade.

Existem diversas analogias com as serpentes na religião hindu que denotam a ideia de transformação e renascimento.

Ao levantar-se na aurora, o Sol “liberta-se da noite, tal como Ahi se livra da sua pele” (Rig V., IX, 86, 44).

Os aditias (divindades filhas de Aditi) nasceram como serpentes. Tendo-se despojado de suas velhas peles – o que significa que adquiriram a imortalidade (“eles venceram a morte”) – tornaram-se deuses (ou devas).

Ainda na religião indiana, o Veda é considerado a “ciência das serpentes”.

Shiva é frequentemente retratado com uma cobra enrolada em seu pescoço. Da mesma forma, Vishnu é retratado com uma serpente de mil cabeças chamada Shesha, na qual ele se reclina.

O conto de Vasuki, o rei serpente, é um dos mitos hindus mais populares. De acordo com o mito, Vasuki foi usado para agitar o oceano de leite. Os assuras e os devas seguraram cada um uma ponta da serpente e começaram a bater no oceano para obter o néctar da imortalidade.

No entanto, durante o processo, o rei serpente começou a cuspir veneno, que ameaçou destruir o universo. Shiva veio ao resgate e bebeu o veneno para salvar o mundo.

Outro mito popular envolvendo cobras é a história de Garuda, o pássaro mítico que era um inimigo ferrenho das serpentes. De acordo com o mito, Garuda nasceu de Vinata, um pássaro, e Kadru, uma serpente. Como resultado de uma maldição, Vinata se tornou a serva de Kadru e foi compelida a servi-la. No entanto, Garuda estava determinado a libertar sua mãe da servidão e decidiu roubar o néctar da imortalidade, que era guardado pelas serpentes. As serpentes concordaram em dar o néctar a Garuda em troca de sua promessa de acabar com a inimizade delas com os pássaros. Garuda cumpriu sua promessa e libertou sua mãe da servidão.

No âmbito das festividades, temos o Naga Panchami, dia de adoração das cobras (celebrado por hindus, budistas e jainistas – especialmente na Índia e no Nepal). Como parte da festividade, uma serpente feita de prata, pedra, madeira ou pintura é banhada com leite. Cobras vivas, especialmente as najas, também são adoradas nesse dia e alimentadas com oferendas de leite.

A presença da serpente está ligada à ideia de ambivalência típica da religião indiana, pois a serpente em si possui seus sinais de ambiguidade, sendo boa e ruim ao mesmo tempo.

Podemos extrair de uma cobra tanto veneno quanto remédio, aspectos que já eram notados pela avançada medicina hindu e sacralizados no imaginário coletivo.

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O podcast é apresentado por Gabriel Vince. Já foi estudante de filosofia, história, programação e jornalismo. Católico, latino e fã de Iron Maiden. Não dá pra ser mais aleatório que isso.

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