Não apenas o teatro, mas a própria ideia de folia nasceu da religião.
Quando observamos uma cerimônia religiosa — uma missa, por exemplo —, o que vemos é, permita-me a redução didática, uma teatralização de momentos sagrados. A eucaristia encena a Santa Ceia e a Crucificação, transformando-as em um banquete teofágico e em um sacrifício incruento de uma vítima expiatória eterna.
Já a folia, em sua essência, representa outra dimensão religiosa: as festas públicas marcadas por alegria desinibida, máscaras, danças e música. São celebrações menos sérias, menos litúrgicas, mais anárquicas e, por vezes, até conflituosas em relação aos rituais solenes — tensões que jamais se dissolverão.
Essas farras, que também carregam um caráter teatral, integram-se ao universo católico de diversas formas, como na Folia de Reis e nas Quadrilhas de Festa Junina.
Curiosamente, as folias costumam ser mais antigas que os ritos formais. No entanto, devido ao seu caráter espontâneo, tendem a se transformar ao longo do tempo, tanto na forma quanto no significado.
É compreensível revoltar-se contra paródias evangélicas ridículas, como a festa “Sem João” — mas apenas até certo ponto. Tradições populares são voláteis, adaptam-se, e o papel da religião predominante nunca foi suprimi-las, mas discipliná-las.
Mircea Eliade, em “História das Crenças e das Ideias Religiosas”, comenta as festas em honra a Dionísio celebradas em Atenas. As Dionisíacas Campestres, realizadas em dezembro, assumiam a forma de uma falofória — um cortejo que conduzia um enorme falo em procissão. Essa folia pré-dionisíaca, mais antiga que os próprios cultos dionisíacos (e ainda hoje praticada no Japão), foi incorporada por Pisístrato ao imaginário religioso grego. É bem provável que esse ritual público tenha sido modificado em favor de Dionísio por força das autoridades religiosas locais.
Outros divertimentos rituais de origem religiosa incluem concursos e desfiles de máscaras, como os que hoje vemos no Halloween e até nos eventos de cosplay — versões modernas dessas farras, agora sem tutela religiosa aparente. Eliade ironiza o homem moderno, que se julga despiritualizado no discurso, mas mantém práticas religiosamente carregadas em tudo.
Há ainda a Pithoigía, a abertura dos tonéis de vinho (píthoi) conservados desde o outono: procissões levavam-nos ao santuário para libações sagradas, seguidas de competições de bebida, onde celebrantes tragavam vinho de cântaros no menor tempo possível – algo comum em qualquer encontro de amigos em um pub.