O que é mais fascinante na Epopeia de Gilgamesh, o maior poema épico mesopotâmico (talvez, o maior poema épico da Antiguidade), é que se trata de uma gigantesca e heroica história de derrotas e, não me achem louco, mas possui um certo tom de comédia.
O herói, Gilgamesh, rei de Uruque, é representado de maneira ambígua, com características tanto positivas quanto negativas. Ele realiza grandes feitos e é herói de inúmeras batalhas, ao mesmo tempo em que é arrogante e déspota.
A população de Uruque também é ambígua, vendo-o como um protetor, mas ao mesmo tempo como um tirano autoritário. Eles pediam aos deuses que enviassem alguém para conter seus excessos.
Os deuses atendem ao pedido enviando Enquidu, um semi-selvagem criado com os lobos, que desafia Gilgamesh. No entanto, Gilgamesh o vence em batalha. Sim, Gilgamesh derrota o homem enviado pelos deuses! Teriam os deuses se enganado? Seriam os deuses impotentes diante do grande Gilgamesh? A resposta é não. Os deuses já sabiam o que iria acontecer, como veremos a seguir.
Os homens são tolos ao acharem que suas vitórias em vida, por mais grandiosas, numerosas e impressionantes que sejam, mudam a condição que lhes é própria. Gilgamesh, após derrotar Enquidu, poupa sua vida, e ambos se tornam amigos e parceiros de aventuras.
As aventuras antigas eram épicas em seu formato, mas escondiam um caráter iniciático, uma luta espiritual que se desenrolava durante as ações, pontuadas por desafios que visavam desenvolver virtudes.
O primeiro desafio espiritual estava relacionado ao medo. Gilgamesh e Enquidu dirigem-se à Floresta dos Cedros para combater o monstro Humbaba. O segundo desafio era a luxúria. Após o retorno a Uruque com a madeira da floresta e a cabeça do monstro, a deusa do amor Inana tenta seduzir Gilgamesh. Ele a rejeita, e a deusa, como vingança, convence Anu – o deus sumério supremo – a enviar o Touro Celestial para destruir Uruque. Gilgamesh e Enquidu matam o touro, embriagam-se com a vitória, ao ponto de Enquidu, em um momento de exaltação, cortar a coxa do touro, banhar-se com seu sangue e lançar o membro aos pés de Inana, proferindo a ela uma série de ofensas e insultos. Totalmente ofendida, Enquidu é amaldiçoado pela deusa e morre 12 dias depois da blasfêmia. Gilgamesh lamenta-se amargamente, mas não pode ajudá-lo.
Após a morte de Enquidu, Gilgamesh, desesperado com a consciência da morte, lança-se numa busca pela imortalidade. Depois de passar pelo portal do sol, guarnecido pelos homens-escorpiões, atravessar o rio da morte e o inferno, Gilgamesh encontra Utnapistim, sobrevivente do grande dilúvio que acabara com toda a humanidade eras atrás. Utnapistim conta a Gilgamesh sobre uma planta que cresce sob o mar e confere a imortalidade; com grande dificuldade, o herói consegue obtê-la, mas, num momento de descuido, a planta é roubada por uma serpente enquanto este descuidadamente se banhava num lago de água fresca.
Meu Deus! Como isso não é cômico?
Depois de derrotar monstros, vencer a luxúria, passar pelo portal do sol, pelos homens-escorpiões, atravessar o inferno e o rio da morte, um pequeno descuido faz com que toda sua jornada, por mais incrível que fosse até aquele momento, se esbarre numa conclusão ridiculamente anticlimática.
Anos atrás, eu ficaria desapontado, mas hoje acho que a Epopeia de Gilgamesh é bela porque é humana. Ela é a grande e épica história de um processo iniciático malogrado. Ela é bela por que, no fundo, é chestertonianamente engraçada.
Gilgamesh retorna a Uruque, encontrando as grandes muralhas construídas por ele, e melancolicamente conclui que elas serão sua grande obra duradoura. O máximo que um homem pode alcançar.
Os deuses pregaram uma peça em Gilgamesh.