Estava lendo a matéria da Economist sobre o “revival do paganismo” na Inglaterra, inspirado no filme “The Wicker Man” de 1973. Essa matéria foi indiretamente recomendada por Felipe Trielli em um vídeo que ele fez sobre o filme no Estúdio Quinto Elemento, onde ele afirmou que o filme previu a “macumba Woke”. Nunca tinha pensado nisso.
Segundo Mircea Eliade, as mitologias indo-europeias são hoje conhecidas através de fragmentos. O que sabemos delas pertence a diferentes épocas e nos foi transmitido por documentos heterogêneos e de valor desigual.
Posteriormente, fiquei sabendo que, antes mesmo do contato com os cristãos, o povo europeu já vivia uma certa anomia religiosa e havia abandonado boa parte de sua própria tradição.
A primeira grande ironia é esta: se dependesse dos pagãos, o paganismo teria morrido.
Entre os pagãos, havia apenas algumas lembranças formais de ritos arcaicos, histórias orais distantes, muito folclore e uma ou outra prática supersticiosa (incluindo a caça às bruxas), mas nada que possamos considerar um corpo organizado de doutrinas e prescrições.
Ironicamente, acusam o cristianismo de eclipsar tradições que, na verdade, já estavam mortas.
Aliás, seu papel foi exatamente o oposto.
Os cristãos, ao tentarem se comunicar com os povos pagãos, precisaram abrir antes de tudo um diálogo com eles através de uma linguagem cultural que refletisse um denominador comum.
A reunião e, principalmente, a organização dos mitos que lhes eram contados através das incontáveis tradições orais exerceram um papel fundamental nisso.
Os cristãos, através de uma cultura conciliar muito própria, sempre buscaram entender os próprios textos sagrados através de um exercício de curadoria e estudo, separando textos canônicos de apócrifos.
O mesmo foi feito com as histórias e os mitos pagãos.
Se hoje sabemos hinos, textos rituais, poesia épica, comentários teológicos, lendas populares, historiografias e tradições, devemos ao que o cristianismo preservou e organizou de outras culturas.
A segunda grande ironia é esta: na tentativa de substituir o paganismo pelo cristianismo, o próprio paganismo teve que ser parcialmente preservado – a contragosto dos próprios cristãos.
Toda a história espiritual europeia é uma colisão constante de ironias e paradoxos.
Tudo o que sabemos hoje sobre paganismo antigo já é uma noção cristianizada ou literalizada por um cristão.
Das obras de Wagner à imaginação de Evola, das bandas de Black Metal às lojas de cristais da feira hippie. Tudo, paradoxalmente, é um subproduto cristão.
Sempre acho engraçada toda essa tentativa de se resgatar os valores pagãos desconsiderando todo esse contexto.
O máximo que conseguimos entender do paganismo europeu original, sem a influência cristã (que praticamente o inventou), é uma reconstrução especulativa de pistas arqueológicas, na qual estudiosos da religião se tornam essenciais.
Se Mircea Eliade achava particularmente desafiador estudar o paganismo europeu puro, imagine um monte de jovens místicos que usam pentagramas e decoram suas estantes de livros da Darkside com raízes de mandrágora.
As informações puras que temos do paganismo original são mínimas e insuficientes para remontarmos com precisão sua estrutura básica de crenças, quanto mais organizar essa estrutura básica de crenças em uma sistematização religiosa.
O que se entende como “resgate da prática da religião pagã” é particularmente cômico nesse sentido e espiritualmente tão significativo para mim quanto um evento de cosplay. O que temos aqui é um desfile carnavalesco de personagens, símbolos e gestos inventados, muitas vezes inspirados por filmes de terror e literatura pulp.
Tenho dificuldades de levar a sério um imaginário religioso que tenha surgido de um filme inglês dos anos 70 (dirigido, ironicamente, por um diretor assumidamente cristão), assim como tenho dificuldades de levar a sério a cientologia, uma religião que nasceu de um livro de ficção científica.