O Enforcado Desconhecido (The Hanging Stranger) é um conto de ficção científica do escritor americano Philip K. Dick, originalmente publicado em dezembro de 1953 na revista Science Fiction Adventures.
Este conto foi traduzido para diversos idiomas e adaptado por Dee Rees no episódio “Kill All Others” para a série Electric Dreams de 2017.
A História
Ed Loyce, proprietário de uma pequena loja de televisores, ao sair rotineiramente para o trabalho às 5 da manhã, depara-se com um homem enforcado num poste de luz em frente a uma praça movimentada.
Apavorado, corre para avisar as pessoas daquela cena grotesca. Pede ajuda, liga para a polícia – alguma coisa tinha que ser feita!
Mal sabia ele que o corpo estava ali há muito tempo. Toda a cidade já tinha visto. As pessoas ficaram espantadas no começo, algumas até indignadas e assustadas como Ed Loyce. No entanto, no dia seguinte, o corpo permanecia no mesmo lugar.
Semanas depois, o corpo ainda estava lá.
As autoridades já tinham conhecimento da situação e não faziam nada.
“Talvez o corpo esteja lá por algum motivo”.
Cada pessoa tinha uma “opinião” sobre o corpo: até mesmo se aquilo era mesmo um corpo ou não. Assim como hoje, as pessoas têm “opinião” até sobre se bebês em fase intra-uterina são ou não humanos.
Enfim, aquilo se transformava pouco a pouco em curiosidade – depois em algo trivial, corriqueiro, uma decoração de mau gosto que cheirava mal, no máximo.
Depois, as pessoas já não se importavam mais, aparentemente.
No fundo, sabiam que algo estava errado.
Havia um corpo apodrecendo no meio da praça! Mas como ninguém falava sobre o assunto, não havia motivo para preocupação. Elas também estavam cansadas demais para pensar naquilo.
Pensamento positivo! Se a gente não pensar no problema, ele não existe.
As lojas abriam no mesmo horário, os trens funcionavam, e as pessoas iam e voltavam para o seu trabalho, enquanto o corpo pendia no mesmo lugar.
O truque
No final, tudo era um truque de dominação de seres de outra dimensão, conforme Loyce descobriu. Se conseguissem amolecer moralmente as pessoas a esse ponto, poderiam realizar qualquer coisa com a Terra.
Loyce ousou denunciar o absurdo e insistiu em manter-se indignado, enojado e humano. No desfecho, ele se tornaria o próximo “enforcado desconhecido” – em outra cidade, em outra praça.
O corpo enforcado era, na verdade, uma isca para atrair homens como Loyce, que representavam um problema para o projeto de dominação.
A Espiral do Silêncio
Contos como “O Enforcado Desconhecido” de Philip K. Dick (que está resumido acima) pode ser interpretado como uma metáfora política do que conhecemos como “Espiral do Silêncio”, teoria proposta por Elisabeth Noelle-Neumann em 1977, que diz que indivíduos tendem a omitir sua opnião quando está é conflitante com a opnião dominante.
Esse comportamento gera uma tendência progressiva ao silêncio, tratando-se, pois, de um movimento ascendente em espiral, daí a denominação espiral do silêncio, porque o indivíduo, ao não expôr sua ideia, automaticamente compactua com a maioria, de modo que outras pessoas, que poderiam com ele concordar, também deixam de verbalizar suas ideias. Quanto menor o grupo que assume abertamente a opinião divergente, maior o ônus social em expressá-la.
O que acontece no conto é que esse comportamento é instrumentalizado por seres de outra dimensão, que se assentam nas estrutras de poder (no conto, eles invadem as prefeituras de cada cidade) e que, de cima para baixo, regulam os humores daqueles que governam, manipulando a carência humana de criar vínculos sociais e seu temor pelo isolamento, ostracismo e exclusão social (algo estudado desde Aristóteles).
A opinião pública se torna uma poderosa ferramenta de controle social a que ninguém fica indiferente. Ela é uma forma de coação, que induz aos indivíduos uma auto-ananulação para garantir a coesão e a estabilidade.
Através de uma linguagem pulp de ficção-científica sobre invasões alieníginas, seres de outra dimensão e invasores de corpos, Philip K. Dick descreve com incrível precisão uma complexa teoria de comunicação social e dominação política. Além disso, ele apresenta os efeitos psicológicos do amortecimento moral de uma sociedade que deixou de se indignar com um “corpo enforcado pendido num poste de luz”.
Episódio 10: Kill All Others (Electric Dreams – Amazon)
⭐⭐⭐⭐⭐
A adaptação de Dee Rees para o conto “O Enforcado Desconhecido”, intitulado “Kill All Others”, é muito boa. Ela consegue adaptar tanto o conto original quanto incorporar elementos de outro conto dessa mesma seleção, “Sales Pitch” – que teve uma adaptação lamentável nesta série.
Diferente de Sales Pitch, Kill All Others desenvolve o cenário de fundo, onde a publicidade em vídeo está por toda parte, até mesmo invadindo as casas.
Neste conto, a América do Norte é uma única nação com um único candidato presidencial.
Philbert Noyce, um trabalhador de linha de produção, não se entusiasma muito com o consumismo nem com os rumos da política. Certa noite, durante o discurso da candidata, Philbert a ouve pronunciar as palavras “mate todos os outros” – enquanto essas palavras piscavam na tela, diante de seus olhos incrédulos.
O que o deixa ainda mais incrédulo é a reação de todos ao seu redor – ou, melhor dizendo, a falta de reação diante de um discurso de ódio tão evidente e literal.
As explicações vão desde “deve ser uma figura de linguagem” até “se você não é um dos ‘OUTROS’, você não deve se preocupar”.
Dee Rees faz um excelente trabalho em mostrar o tema da espiral do silêncio – trabalhado no conto original. Aqui vemos um homem que é lúcido o suficiente para se indignar, mas impotente diante da perplexa indiferença omissiva de todos ao seu redor.
Ótima adaptação de um dos melhores contos de Philip K. Dick.