O mundo antigo conheceu várias bebidas que desempenharam um papel estimulante e revigorador. Essas bebidas pareciam ser mágicas, pois alteravam nosso humor, deixando-nos alegres e desinibidos. Elas também nos proporcionavam pensamento rápido, curavam nossas enfermidades, aumentavam o vigor sexual e reanimavam a coragem dos guerreiros.
Além da percepção de que havia bebidas que poderiam aumentar nossa vitalidade, existia uma outra percepção mais mística, situada num horizonte transcendental, de que havia bebidas que nos deixavam imortais, que nos tornavam deuses.
Essas bebidas estavam fora do alcance dos homens, sendo dedicadas e exclusivas aos seres superiores.
No mundo hindu, temos o Soma.
Soma é uma bebida de uso ritual importante entre os primeiros indo-arianos védicos. É mencionado no Rigveda, particularmente no Soma Mandala.
O Bhagavad Gita, texto sagrado hindu, menciona a bebida no capítulo IX.
Os textos descrevem a preparação do soma por meio da extração do suco de uma planta.
Beber soma produz imortalidade (Amrita, Rigveda 8.48.3). Indra e Agni são retratados consumindo soma em grandes quantidades. Na ideologia védica, Indra bebia grandes quantidades de soma enquanto lutava contra o demônio serpente Vritra.
O consumo de soma por seres humanos é bem atestado no ritual védico.
Estudiosos e botânicos tentam especular sobre a planta original que poderia ter dado origem ao mito, mas acredito que a tentativa de achar um correspondente “real” é “antropológica” demais.
Talvez falte um pouco de especulação mística e letramento simbólico entre os cientistas, pois o “soma” é parte de uma percepção tradicional muito antiga (e curiosa) que aproxima a ideia de nutrição da ideia de deificação.
Quando a serpente quis convencer Eva a comer o fruto proibido, a promessa de deificação estava circunscrita no pacto proferido.
Quando Eva comeu o fruto, ela cometeu inúmeros pecados, talvez um dos mais esquecidos (e importantes) seja o roubo.
O mito mais importante acerca do Soma também é sobre seu roubo. Nele, Soma foi originalmente mantido cativo em uma cidadela no céu pelo arqueiro Krsanu. Um falcão roubou o Soma, escapando com sucesso de Krsanu, e entregou-o a Manu, o primeiro sacrificador.
Existe a percepção de que alimentos celestes devem ficar fora do alcance do homem e apenas ser consumidos quando houver permissão divina, como no caso do maná durante o êxodo israelita ou nas eucaristias diárias da missa, que exigem a contrapartida da purificação e do estado de graça.
Há um certo ímpeto de dessacralização na ideia de se atribuir ao soma sua correspondência botânica real ou a ideia alquímica de se produzir a bebida sagrada através de fórmulas descobertas apenas pelo gênio humano. As diversas formas de bruxarias são condenadas em todas as religiões (não apenas na cristã) justamente por isso.
O soma é a droga utilizada pelos personagens do livro “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, para nunca ficarem tristes. Esta substância provoca felicidade e anestesia a percepção de si mesmos e dos seus conflitos internos nos seus usuários, perpetuando uma sociedade de castas artificiais através da manipulação farmacológica.
Ao longo do romance, Huxley nos apresenta uma sociedade onde o soma é utilizado para manter as massas controladas e satisfeitas. Ao eliminar a capacidade de introspecção e questionamento, o soma reforça a estabilidade de uma ordem social rígida e inflexível. As pessoas são condicionadas desde o nascimento a aceitar passivamente seus papéis predeterminados, sem jamais questionar ou buscar algo além da superficial felicidade química.
A escolha do soma para representar uma droga de promessa deificadora, solucionadora dos conflitos internos, não é atoa.
A sedimentação social de “Admirável Mundo Novo” é uma paródia futurista e materialista do mundo de castas da Índia.
Esse sequestro de Huxley é cínicamente genial (tal como o autor), pois não apenas dessacraliza o soma, mas o torna uma ferramenta insolente de um mundo ao mesmo tempo avançado e decadente.